Havia na minha rua um sapateiro-remendão que passava os dias no paleio com quem passava à porta da oficina, enquanto apertava sapatos, remendava solas e puxava o lustro às botas da Senhora Ermelinda e às das amigas da Senhora Ermelinda. Chamávamos-lhe Ti Zé. Os velhotes da minha rua que tinham profissões como ele eram todos Ti Qualquer Coisa. Para nós, putos de escola primária, todas as pessoas com mais de 20 anos eram naturalmente velhotes. Havia o padeiro, o ferreiro, o mecânico de bicicletas, o merceeiro, o vendedor de panos. O Ti Zé era divertido, esperto como um alho, saía-se sempre com uma anedota oportuna. E sabia tantas e tão coloridas. E era malicioso. Adorava desafiar o pudor dos rapazes que se iniciavam “naquilo” como podiam, à socapa de uma moral que, no fim de contas, era mais tolerante do que parecia. Lembro-me de um jogo de cartas com mulheres quase nuas que fazia as nossas delícias. Por essas e por outras a oficina do Ti Zé era mais do que um sítio onde se reparava calçado. Era uma espécie de templo do pecado, o máximo da transgressão a que tinhamos direito sob a tutela experimentada do Ti Zé. Era um sítio para rapazes. As raparigas passavam por ali coradas, suspeitando a falta de decoro. Recordo-me perfeitamente do riso picante e amigo do Ti Zé. A partir de certa altura, começaram a faltar-lhe as forças para puxar as cordas ensebadas, morreu-lhe no ultramar o filho militar, o neto casou e foi para longe e o Ti Zé ficou triste. Pouco tempo depois fechou a oficina e os nossos pais passaram a reparar os sapatos num centro comercial cheio de máquinas e a cheirar a novo. Mas, a reparação custa tão caro que, agora, deitam-se fora os sapatos velhos e compram-se outros que custam pouco e que duram ainda menos.
Nos seus tempos áureos o Ti Zé não tinha dúvidas existenciais. Não se sentia todos os dias à prova, não devia demonstrar a sua competência ou eficácia. Ele era simplesmente bom. Trabalhava bem e barato, não tinha de comunicar a ninguém resultados semanais ou mensais ou trimestrais. Não tinha dúvidas sobre o seu próprio valor. Não precisava de fazer de conta que era simpático. Não se punha a discutir o significado da amizade, do perdão, da tolerância ou da generosidade. Tudo isso lhe saia espontâneamente, como respirar, rir ou comer. Era feliz como a felicidade pode ser simples. A vida era uma dádiva que não discutia, que apanhava no ar com a inocência de uma criança. Há cada vez menos Ti Zés e cada vez mais pessoas que se metem dentro de si próprias à procura de um sentido para as suas atormentadas existências, que se esforçam para ser bons cidadãos. Mas, talvez a “culpa” não seja só das pessoas, mas de uma sociedade que também mudou, que se modernizou no sentido das máquinas de reparar sapatos e de centros comerciais cheios de luz, a cheirar a plástico e a detergente.
2 comentários:
Como Zé (que sou) adorei est post e, inclusive,copiei parte e anexei
um link para a leitura completa do
mesmo. Fiquei "melga" deste blogue.
Com simpatia
José
É um prazer cruzar-me com um Zé. Andam-me a faltar os Zés de outros tempos. Bem haja.
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