domingo, fevereiro 10, 2008
O rosto
Olhou-o longamente, como se estivesse de partida para uma longa viagem. Como se estivesse para o perder. Queria ficar-lhe com todos os detalhes, a cor dos olhos, a pequena cicatriz no queixo, as orelhas pequenas e bem desenhadas, o cabelo castanho e ondulado, as rugas ao canto dos olhos quando sorria, o nariz perfeito como mármore. Queria levar consigo os ingredientes com que pintaria a paisagem do seu rosto. Não sabia quando o voltaria a ver. Talvez no dia seguinte. Talvez nunca mais. Com ele, era assim mesmo. Uma montanha russa, uma caixinha de surpresas de que podiam sair momentos deliciosos ou autênticos pesadelos. Mas, ela continuava nessa oscilação permanente, sem esperança, sem futuro, com uma memória selectiva. Para se proteger. Queria, pelo menos, ficar com uma bonita recordação do seu rosto, no caso de tudo acabar subitamente. Como era previsível. Por isso o olhava longamente, ignorando as palavras de bandido com que, mais uma vez, ele tentava encantá-la. As palavras valiam pouco, sempre menos, menos do que o seu rosto, uma espécie de último testemunho do que de bom tinham vivido. Era preciso ficar com aquele rosto gravado na memória porque tudo o resto estava condenado a estragar-se, como uma velha folha de papel a flutuar numa corrente de àgua turva.
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