quinta-feira, maio 09, 2013

Um gato

Era uma vez um gato que vivia triste no último andar de um prédio. De vez em quando, levavam-no à rua com uma trela. Imaginam um gato com uma trela? É como um pintor sem pincéis, um jardim sem flores. Quando o deixavam na rua sem trela, esperando que regressasse a implorar para subir para o conforto do último andar, ele desaparecia. E ficava dias a fio desaparecido, seguramente satisfeitíssimo apesar da hostilidade da rua. Até que um vizinho respondia a um anúncio piedoso de "gato desaparecido" colado nas paragens de autocarro ou nas paredes da junta de freguesia ou da igreja com uma imagem fotogénica do bicho. Voltava o desgraçado animal à solidão do conforto do último andar. Fartos de tantos desaparecimentos, os donos desistiram de arriscar dar-lhe alguns momentos de liberdade e o gato caiu numa profunda melancolia, escondendo-se por trás dos móveis, deixando de miar, perdendo o apetite, metendo o focinho numa postura lacrimal que metia dó. Os donos sentiram-se culpados e impotentes porque não lhes passava pela cabeça mudar para um rés-do-chão para devolver a felicidade à triste criatura. Aqui entro eu.

Vivendo num conveniente rés-do-chão com jardim e sendo amigo da malograda família, tornei-me candidato a socorrista dos problemas da alma causados por um gato deprimido. Eis-me a braços com a integração do animal num novo ambiente destinado a dar-lhe saúde e felicidade. O “meu” gato passou a ocupar literalmente o pequeno espaço do meu apartamento, a dormir ao fundo da minha cama e a deixar-me sossegar quando lhe apetece, a ritmar as minhas preocupações, conforme a duração das suas ausências, sabe deus a fazer que descobertas em que outros jardins ou condomínios. Esse ser enigmático e anafado que oscila entre o carinho e a indiferença, entre uma preguiça ostensiva e uma hiper-sensibilidade ao mais pequeno movimento de outros animais, para além de mim próprio, incluindo pássaros e outros gatos que frequentam o meu jardim, passou a ser mais um desafio na minha vida atribulada. Gostava de aprender a viver bem com um gato, sem o perder. Pelo menos, sem ter a responsabilidade da sua perda. Gostava de estar com ele quando nos apetecesse aos dois, sem nenhuma imposição, ressentimento, suspeita ou promessa.

4 comentários:

Teresa disse...

Só te faltava esse cadilho, não era Miguel? Agora não te esqueças de lhe dares muitos miminhos, que eles gostam e precisam. Trata-o bem e terás um amigo fiel para sempre.

O bichinho tem nome?
(nunca fico indiferente a histórias que têm gatos como protagonistas)

Miguel disse...

Substitui "gato" por "pessoa"... O gato, o verdadeiro, tomou gosto à liberdade e anda desaparecido desde ontem de manhã. Será que volta? Ou foi para outro cativeiro? A liberdade "à la carte" é sempre coisa complicada. Daí o final da minha crónica.

Miguel disse...

Já agora, o animal chama-se Danúbia.

Teresa disse...

Assim me pareceu.

Já reparaste que as melhores coisas da vida acontecem quando menos esperamos, quando nada fizemos para as procurar? Keep your mind and heart open and an eye on the possibilities, and anything can happen. E já agora, desde quando é que “complicado” é sinónimo de “impossível”? Já reparaste que as coisas mais difíceis de obter são, frequentemente, as mais gratificantes?
Que tudo (também) te corra bem com o(a) Danúbia. Se ele(a) insiste em fugir é porque não está bem; tal qual os humanos que sentem necessidade de ir pregar para outra freguesia. No livro de curso do meu High School (liceu/secundário) houve um colega que escreveu a seguinte frase debaixo da sua fotografia: “If you love someone, set them free. If they come back, they’re yours; if they don’t, they never were.” Na altura ainda não percebia muito bem o sentido...hoje, entendo perfeitamente.

Good luck and keep us posted :-)