Pareceu-me recuar 30 anos. As mesmas caras com sulcos de insónia, bebida e cigarro. A miséria que envelhece depressa. As ruas estreitas, vestidas de pobreza. Pessoas com a barriga inchada de fome, à espera sabe deus de quê, na soleira de lojas vazias de clientes e cheias de objectos feios, à espera de serem lixo. O cheiro a esgotos, beatas de cigarro, restos de jornais a vomitar más notícias aos solavancos, arrastados pelo frio.
Era tão boa a ilusão da abundância, aquela coisa mundana de comprar só para mostrar que se pode ter, de passear ao domingo no centro comercial, respirando o brilho das luzes, misturando desejos, enrolando tudo numa doce euforia. Agora dá-se um passo atrás, de facto, tantos passos atrás, caindo nessa coisa a que chamam realismo, esperando não cair nessa coisa a que chamam pobreza que tem de se esconder. Porque parecer pobre faz mal a quem já pareceu ser rico.
Afinal de contas a queda do PIB (grosso modo, rendimento nacional) em 3.5% nem é tão má. Sobram 96.5%. De que se queixam, afinal? Podia ser pior. Vai ser pior. Perder a calma por 3.5% parece exagerado. Bem sei que esses são grandes números. As médias são mentirosas. Muita gente perde substancialmente mais. Alguns continuam a subir. É a injustiça da crise. A lei dos grandes números penaliza mais a famosa classe média porque vai sendo a mais numerosa e vai tendo alguma capacidade de pagar. Dos pobres nem se fala! De qualquer maneira, por muito que se lhe tire, daí não resulta grande coisa para restabelecer os insofismáveis equilíbrios macro-económicos. Quanto aos ricos, estamos conversados: safam-se sempre, os sacanas.
O país está francamente a andar para trás depois da ilusão do bem-estar a crédito. E tenho a impressão de que os tipos que nos governam estão a perder completamente o controlo do processo de ajustamento em curso porque a magnitude do declínio deixou de caber no rigor das equações. A única luz ao fundo do túnel parece ser a de um comboio em alta velocidade em sentido contrário…
1 comentário:
I was enveloped by a sense of foreboding after reading this text. That imagery at the end is quite powerful. WELL DONE – as usual :-)
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