Hoje no autocarro, regressando a casa, pus-me a olhar para as àrvores, para as pessoas, para as ruas como se fosse a última vez. Fiz um esforço para olhar e sentir o mundo à minha volta como se fosse a última vez. Dirão que se trata de um exercício estúpido por parte de quem goza de boa saúde, de quem não tem muitas razões de queixa da vida. Claro que a vida tem sempre arestas e sobressaltos, frustrações, surpresas desagradáveis, desilusões. Mas, isso faz parte da sua própria essência. E esses “incidentes” são compensados por tantas coisas boas que a vida também tem. A objectidade dos factos da vida é uma treta. No final de contas, muitos dos problemas têm a importância que lhes damos, inspirados pelas emoções que, tautologicamente, de objectivo nada têm. Longe de mim menosprezar os verdadeiros problemas, aqueles que tresandam de concretos, que são irreversíveis e inquestionáveis.
Portanto, pus-me (tetricamente) a olhar para o mundo como se lhe estivese a fugir. Tentei encher a alma de melancolia, disfarcei dor, desejei a eternidade, fingindo a iminência do fim. Devo confessar que comecei por duvidar do sucesso desta tentativa. Achei que toda a encenação acabaria ao fim de alguns segundos, no meio de arrependimento por falta de respeito às pessoas que verdadeiramente se avizinham do fim. Porém, para minha surpesa, acho que consegui sentir o medo do fim e, avidamente, quis fixar o menor detalhe do que passava pelos meus olhos, como se fosse realmente a última vez. As pessoas e as coisas passaram a ter outro significado, outra nobreza, cada uma especial e única, perene, como nunca as tinha visto. O medo foi tanto e pareceu tão real que pus fim â brincadeira imediatamente. Espantei o pensamento e mergulhei no livro de polícias e ladrões que tinha trazido para me entreter durante a viagem.
Vá-se lá brincar com o fogo...
Mas, olhar para o que nos rodeia como se fosse a última vez faz do mundo uma coisa tâo especial e bonita, que se deve guardar como um tesouro, que de banal nada tem, que não se deve desperdiçar no meio de pressas mais ou menos inúteis ou redundantes. Abaixo os olhares displicentes, as caras fechadas, o desprezo pelo verde dos campos, a ignorância do mar e do sorriso, a indiferença aos pingos de chuva e ao brilho do sol a desaparecer lentamente no horizonte.
Sem comentários:
Enviar um comentário