Nunca nos amaste. Só querias resultados. O teu carinho era metálico e sibilino. Não me lembro dos teus beijos nem dos teus abraços. Só me lembro do teu olhar reprovador ou elogioso. Rápido como um golpe. Estavas sempre de saída, com a mala preta cheia de papéis. Chegavas tarde e falavas sempre do mesmo. As férias eram um aborrecimento, uma cedência a coisas irrelevantes... como nós, acidentes de uma vida com outros desígnios. Éramos obrigações, mais ou menos, decorativas. Uma vez, pediste a um polícia sinaleiro para olhar por nós e foste-te embora, “só por um bocadinho”, que te tinhas esquecido de uma coisa muito importante no escritório. O polícia acabou o turno e ficámos ali à beira da passadeira a ver passar carros e pessoas e a ver o céu escurecer. E voltaste já era noite funda. Deste-nos um beijo furtivo, inclinaste a cabeça como que a pedir desculpa, fizeste um sorriso que mais parecia uma esmola. O telefone tocou e continuaste pelo passeio a falar a falar a falar, fora dali. E nós seguimos-te como rafeiros, quase a correr. Íamos de mãos dadas, tão apertadas, tão apertadas que quase doía.
Assim se criou uma grande cumplicidade entre nós, os rafeiros que corriam atrás das tuas saias. Bastava olhar um para o outro, suspirar, assobiar para fugirmos da tua ausência, para nos safarmos nesse deserto de ternura, nessa enxurrada de palavras que não percebíamos, o teu código de que não fazíamos parte. Percebemos, no entanto, o significado da palavra sobrevivência. Crescemos para além de ti, apesar de ti, com uma dor profunda que custou tanto a cicatrizar. A dor do abandono. Mas, no fim de contas, desenrascámo-nos os dois na vida. A partir de certa altura, como é normal, cada um pelo seu lado, mas mantendo sempre uma grande amizade e a convicção do mal que nos tinhas feito. Uma espécie de amizade de soldados que sobreviveram a uma guerra terrível. Nunca falámos claramente desses momentos sombrios da nossa infância. Como se não fosse necessário. Como se existisse uma linguagem subtil das emoções, mais eloquente do que todas as palavras.
O que é mais incrível é que não fizeste nada por mal. Temos a certeza. Por isso não te podemos culpar... Eras apenas cega, indisponível para amar. E “não há mal pior do que o que se faz com a melhor das intenções”. E nem os anos, nem as contas que se fazem com a vida à medida que se envelhece, te fizeram compreender o passado. Por isso, agora, chegas a acusar-nos de ingratidão porque não passamos lá por casa todos os dias para saber como vai o teu reumatismo, porque não te telefonamos depois das tuas inúmeras consultas com o Dr. Policarpo, o curandeiro da tua alma, mais do que das tuas proverbiais enxaquecas. E não te cansas de dizer que foste extremosa e diligente. Que fizeste tudo por nós. E que chegámos onde chegámos porque nos puseste nos melhores colégios e nos arranjaste professores de Piano e de Francês enquanto as outras crianças do bairro rasgavam as calças a jogar à bola e assoavam o nariz na manga do casaco.
É difícil dizer obrigado. Resta-nos ter pena de ti.
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