sábado, janeiro 26, 2008
André
O André trabalhava a madeira com as mãos e com ferramentas muito simples numa pequena oficina no meu bairro. Transformava mesas, cadeiras e armários velhos e carunchosos em obras de arte que vendia caro a médicos, advogados e engenheiros ricos. Estacionavam os carros de luxo em frente da marcenaria e nós íamos admirar as "máquinas" enquanto o André fazia negócio e nos piscava o olho numa cumplicidade de garotos. O André gostava de crianças e de bebida e de mulheres. Era um homem alto, bonito e musculado. A maior parte do dinheiro que a arte lhe dava ía para esses "excessos". Era um exagerado. Não fazia nada na proporção razoável: era demasiado artista, tinha demasiado bom gosto, gostava demais das coisas boas da vida. E era demasiadamente mau marido e mau pai... Tinha aquele ar alucinado, aquelas expressões únicas que ficavam numa espécie de antologia para amigos. De vez em quando, disparatava, surpreendia todos com palavras ou actos descabidos e incompreensíveis. Tornava-se agressivo, como se houvesse um mal-estar latente à espera da mínima oportunidade para se mostrar. Acho que era essencialmente um inquieto, frustrado por ter de se submeter às regras de uma vida para a qual achava não ter nascido. O André era um concentrado de emoções em luta permanente com uma razão castradora de talento. Era um artista e julgava que isso lhe permitia transgredir sem qualquer punição. Foi mais ou menos assim durante quase toda a vida, até que a doença o atacou de forma irremediável, chamando-o a uma realidade mais cruel e absurda do que a que ele alguma vez tinha odiado. Teve de se conformar às restrições mais básicas da sobrevivência. Vi-o recentemente. Velho, caduco, trôpego. Nem sequer me reconheceu. Chamei-o. Balbuciou palavras irreconhecíveis e prosseguiu na sua caminhada sem destino feita de passos minúsculos e dolorosos. Prometi não voltar a ver a sombra do André que conheci.
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2 comentários:
alguem de economia por aqui?.. fala-se de crash e da armadilha da liq/ do keynes ali em baixo...
Podes continuar para posts anteriores. Encontrarás muito mais. FEUC 79-84: portanto, velhote... e a derivar cada vez mais para outras àguas. Mas, sempre de aprendiz de feiticeiro (como são os economistas)...
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