Acho que a igreja portuguesa tem sorte com o seu mais alto dignitário, D. José Policarpo. Trata-se de uma pessoa extremamente culta, equilibrada e atenta ao que se passa no mundo, um sério e discreto defensor do Não no referendo do aborto.
Eu sou pelo Sim, mas devo confessar que fiquei impressionado ontem com a moderação, sensatez e perspicácia com que D. José defendeu (no programa Grande Entrevista da RTP) o Não, no quadro ético da Igreja Católica (que absolutiza, não apenas a vida, mas também a potencialidade de vida), sem radicalismo, nomeadamente, em relação a métodos contraceptivos e à penalização das mulheres que praticam ilegalmente o aborto. Mostrou-se tolerante quanto a certos argumentos do campo oposto, propondo cooperação na luta contra as circunstâncias que levam ao aborto, mesmo no caso de o Sim ganhar. Mas, foi intelectualmente honesto ao afirmar que, na realidade, a Igreja se opõe mesmo à lei actual porque, em consonância com a moral cristã, não aceita quaisquer circunstâncias que possam justificar a interrupção da gestação da vida, incluindo mal-formação do feto ou risco de vida para a mulher...
Repito as razões pelas quais votarei Sim e que, apesar de tudo, D. José não conseguiu desfeitear. Voto Sim porque, sendo contra o aborto, como a esmagadora maioria das mulheres que abortam, também sou contra a hipocrisia (que leva, nomeadamente, a não punir criminalmente as mulheres fora da lei actual e a fazer de conta que não se aborta), contra os negócios escuros ligados ao aborto clandestino, a favor da saúde e da vida das mulheres.
Em vez de mudar a lei, D. José chega a defender claramente a tolerância em relação à maior parte das mulheres que abortam. De facto – recorda - quantas mulheres é que foram até agora condenadas pela prática do aborto? Portanto, a hipocrisia fica travestida de tolerância. Mas, nesse caso, porque não, simplesmente, alinhar a lei com a situação de facto? Leis que resistem excessivamente à realidade social e que deixam de exercer um papel pedagógico devem ser mudadas.
Sou um fervoroso defensor da vida, mas fico algo perplexo com a equiparação de vida a potencialidade de vida. Quando é que um embrião/feto é um ser humano ? Antes das 10 semanas ? No preciso momento da concepção ? Parece-me exagerado ir até à potencialidade de vida, porque nesse caso o aborto seria ubíquo. D. José responde dizendo que, de facto, a Igreja se opõe a todas as formas de violação da vida, sem excepção (isto é, - presumo - sem excluir a possibilidade de vida)...
Obviamente, o ideal será evitar as condições económicas, sociais e morais que descambam na maior parte dos abortos. Isso implica desenvolvimento (no sentido mais abrangente da palavra) e planeamento familiar, coisas de que sempre se falou e se continuará a falar. Coisas que, espero, se realizarão na prática com meios adequados e maior determinação, designadamente, da parte do Estado. Estamos a falar de questões gerais de sociedade que também influenciam o debate sobre o aborto. Na verdade, poder-se-ia pensar que o aborto é do foro da consciência de cada um e que, portanto, talvez não se justificasse um debate público nem um referendo. Estes últimos são plenamente justificados pela inscrição do problema na sociedade, nos usos e costumes, na moral colectiva.
O aborto mais odioso é o da irresponsabilidade e da incúria, é o aborto transformado em método de contracepção. Isto é, pessoas com cultura e educação, com acesso a todos os métodos anti-concepcionais e que se encontram sistematicamente na “obrigação” de fazer aborto para evitar uma maternidade / paternidade indesejada, naturalmente, com custos psicológicos e físicos elevadíssimos para as mulheres que caem nesses esquemas. Esses abortos “da facilidade”, talvez se devessem punir, mas reconheço que é difícil, do ponto de vista ético e factual, fazer a distinção entre um aborto esporádico e desculpável e um aborto doloso, no sentido que acabo de definir. Também é preciso não esquecer a percentagem provavelmente marginal que esse chamado aborto doloso representa em relação ao total.
Portugal seria um dos últimos países da Europa a legalizar o aborto até às 10 semanas, o que é expressivo da nossa posição na escala dos valores e do desenvolvimento social.
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