A velha ali mesmo ao lado, no avião, é gaiteira e barulhenta e mimosa e "cheia de vida". Tem um estomâgo do tamanho de uma gravidez, umas pernas musculosas como um futebolista, uns óculos à Truman Capote, um cabelo lustroso e puxado para trás como os fadistas da Mouraria de outros tempos. É corada, da côr do vinho maduro que faz azia.
E eu vou ter de a aturar durante duas horas e meia. É obra !
É egoísta, só fala do seu pequeno mundo transformado em Universo: do refogado de ontem à noite, dos netinhos, das noras, da dor na espinha, da sardinha assada de Portimão. Julga que todos os passageiros estão interessadíssimos nas suas histórias pimba. Disputa cada minuto de atenção aos desgraçados companheiros do lado como se estivesse numa arena a pegar o toiro. É invejosa e insuportável. Não tem dúvidas sobre o que quer que seja. Trata a alegria e a tristeza por tu, como se fossem banais fases da lua num céu sempre estrelado. É uma acrobata que muda de humor com a facilidade de um chimpanzé. Para ela a vida é simples: resume-se à letra de uma cantiga de romaria de Agosto.
A velha gaiteira desconfia concerteza das palavras "existencial" e "dúvida". Cheira só a chulé e a sovaco. Vai morrer um dia com AVC e não deixará nada para trás. Nem sequer um resquício da gula com que sorveu os últimos meses da sua vida. Nem sequer um pequeno remorso pela maneira indecorosa como chateou os outros passageiros, que só queriam digerir a depressão do fim de férias, dormindo ou lendo o jornal, tranquilos e beatos, até chegarem a um destino frio e chuvoso a mais de 2000 km do sol lusitano.
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