segunda-feira, janeiro 30, 2006

Livre-cambismo à la carte

O Sr Mittal é indiano, é um self-made man que demonstra como o capitalismo num país emergente pode transformar um negociante de ferro velho no maior produtor mundial de aço. O Sr Mittal e a família passaram uns anos a comprar fábricas de aço à beira da falência, em todo o mundo, e a transformá-las em autênticas pepitas de ouro. A fámília do Sr Mittal detém cerca de 80% do império Mittal Steel que factura para cima de 30 biliões de dólares por ano (1/6 do PIB português). O grupo tem aproveitado exemplarmente o aumento da procura mundial de produtos siderúrgicos, grandemente empurrado pelo boom da economia chinesa.

A família Mittal é o centro de uma autêntica fairy tale e nada em dinheiro. Compraram uma mansão nos arredores de Londres (capital da antiga, veneranda potência colonial do país do Sr Mittal...) por cerca de 100 milhões de libras. O Sr Mittal organizou uma cerimónia de casamento para a filha que custou mais de 20 milhões de libras, fazendo empalidecer reis e príncipes, rainhas e princesas.

Pois bem. Este Senhor teve o desplante, na Sexta-feira passada, de lançar uma oferta hostil de acquisição sobre o segundo maior grupo mundial de aço (Arcelor) envolvendo um desembolso (entre acções da Mittal e cash) de qualquer coisa como 18 biliões de euros. A Arcelor é um monumento da indústria europeia (chamam-lhe até a Airbus do aço), tendo resultado da fusão de grupos siderúrgicos em Espanha, Luxemburgo e França. O maior accionista da Arcelor é o governo luxemburguês com cerca de 6%. De resto, a sede do grupo situa-se no Grão-ducado. O grupo Arcelor está na confluência de poderosos interesses políticos e industriais.

Temos, portanto, pela primeira vez, um grupo de um país emergente que ameaça comprar um "elefante" da velha indústria europeia, pertencente a um sector de importância estratégica que tem conhecido vários movimentos de concentração. Aliás, a própria Arcelor encontra-se no meio de uma tentativa de compra do maior produtor canadiano de aço, que se chama Dofasco, no que está em concorrência com o grupo alemão Thyssen-Krupp. O Sr Mittal já prometeu à Thyssen que, se comprasse a Arcelor, lhe facilitaria a vida para a compra da Dofasco.

Eis senão quando, o Primeiro-ministro do Luxemburgo (Sr Juncker) e o Ministro das Finanças de França (Sr Bretton), ambos de centro-direita e putativamente favoráveis ao livre comércio, se levantam em uníssono para manifestar a sua desconfiança em relação às intenções do agressivo e endinheirado indiano. Que a Arcelor é uma empresa com valores europeus que não são partilhados por um raider como o Sr Mittal. Que a Arcelor junta o lucro aos interesses sociais dos trabalhadores e aos interesses estratégicos da Europa. Que há um problema sério de fractura cultural que tornaria a fusão muito problemática. Ao que o Sr Mittal jura a pés juntos que não é sua intenção destruir postos de trabalho, que uma grande empresa como a que resultaria da fusão teria muito mais condições de sucesso no mercado mundial e, portanto, defenderia melhor o emprego também na Europa.

Quando se trata de comprar no estrangeiro, o governo de centro-direita da França mete nos píncaros as virtudes do livre-cambismo e da globalização, mas quando são empresas francesas que são alvo de compra, aqui d'el rei que os supremos interesses nacionais estão em perigo e Colbert levanta-se do túmulo para iluminar os espíritos inflamados dos actuais governantes.

Dois pesos duas medidas ou liberalismo à la carte, ou seja, só quando convém segundo critérios que não têm nada a ver com as regras do jogo do próprio liberalismo.

Sem comentários: