Concluiu-se recentemente mais uma ronda de negociações sobre comércio internacional no âmbito da OMC (Organização Mundial de Comércio), organismo multilateral que sucedeu ao GATT (Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio). Esta ronda, iniciou-se em Doha, no Qatar, em 2001 e seguiu-se à chamada Uruguay Round (1986-94). Como vai sendo habitual, as negociações prolongaram-se por vários anos e meteram em confronto, essencialmente, os interesses dos países menos desenvolvidos (liderados pelo Brasil) com os dos países industrializados. Mas, os atritos entre os Estados Unidos e a Europa também fizeram correr muita tinta. Os temas de debate vão-se repetindo, de ronda em ronda: subsídios à agricultura dos países ricos, subsídios às exportações, redução das tarifas sobre o comércio de produtos industriais, liberalização dos serviços e das transacções envolvendo propriedade intelectual, etc. O que continua a impressionar-me é a hipocrisía e a duplicidade dos representantes dos países ricos. De facto, um discurso apoteótico do livre-câmbio e da solidariedade com os países pobres contrasta com práticas altamente proteccionistas dos próprios mercados e uma defesa intransigente das quotas de exportação dos países industrializados. A subordinação a interesses poderosos, cristalizados em vários sectores da economia desses países, é óbvia e, de certa maneira, inevitável.
O crescimento dos países pobres implica, também, a industrialização com base nos factores de competitividade de que esses países inicialmente dispôem, ou seja, mão-de-obra numerosa e pouco qualificada, baixos salários (directos e indirectos), longas jornadas de trabalho, recursos naturais abundantes, normas de protecção ambiental inexistentes ou menos rigorosas do que nos países centrais. A partir de uma certa escala, essa industrialização orienta-se para os mercados externos (casos da Coreia nos anos 60/70 e da China a partir dos anos 80/90). Os sectores ditos convencionais dos países mais ricos, naturalmente, sofrem com essa concorrência. Resistir nos mesmos sectores e/ou produtos significa adoptar medidas proteccionistas, baixar salários reais e degradar as condições de trabalho e de protecção social. No limite, poder-se-ia criar uma espécie de economia dual com um sector moderno de altos salários e de elevadas qualificações e um sector tradicional com baixos salários e desemprego latente. Mas, a médio/longo prazo essa situação não seria sustentável porque a concorrência gera a perequação das condições de produção.
A alternativa, a longo prazo, consiste em ajustar o padrão de especialização das economias mais desenvolvidas, apostando em sectores ou actividades menos expostos aos factores de concorrência dos países mais pobres: tecnologia, R&D, actividades intensivas em capital e em conhecimento, produção em pequenas séries com elevado valor acrescentado, serviços de vanguarda, investimento directo nos países mais pobres gerador de dividendos e royalties. Em resumo, trata-se de continuar a subir na cadeia de criação de valor.
Este discurso aparentemente ortodoxo conduz-nos, todavia, a vários problemas. Primeiro, os problemas relacionados com a gestão das transições, a dos países pobres e a dos países ricos. No primeiro caso, como compatibilizar industrialização e crescimento económico com protecção dos direitos mais elementares dos trabalhadores, com a defesa do ambiente, com uma distribuição mais equitativa da riqueza? Quanto tempo dura a transição, ou seja, quanto tempo é necessário para se passar de um "sweat system" (veja-se a situação miserável de muitos trabalhadores na China ou na India) a uma situação mais avançada de desenvolvimento social e económico? Que nova especialização desses países é compatível com o desenvolvimento e que novas ameaças daí resultarão para os países centrais? A Coreia passou dos têxteis e da química de base aos bens de elevada tecnologia no espaço de uma geração... Esse país começou a comprar TGVs à Alstom e agora exporta TGVs com a tecnologia absorvida da Alstom. A India já começa a competir (por enquanto, principalmente, através de subcontratação) na àrea do software... A China impõe transferência de tecnologia e de fábricas de montagem de aviões para comprar Airbus...
Depois, a transição nos países ricos. O padrão de especialização muda-se a médio/longo prazo. Mas, como dizia Keynes, a longo prazo estamos todos mortos. Que fazer dos operários têxteis que vão (já) para o desemprego? A requalificação leva tempo e é necessário realizar novos investmentos que necessitem das novas competências. A formação profissional, os subsídios de desemprego e as reformas anticipadas não são gratuitos para a colectividade. Engenheiros de novas tecnologias não brotam de geração espontânea. Empresários dinâmicos que percebam que o futuro passa por outro lado não são como os cogumelos. Que fazer de regiões de mono-produção atingidas pela concorrência dos produtos asiáticos ou latino-americanos? Estas preocupações conduzem à defesa das chamadas cláusulas de salvaguarda, isto é, de um proteccionismo, em princípio, temporário. Mas, quanto temporário? E com que eficácia?
Depois ainda, o problema da permanente descoberta de novas fronteiras para a expansão do capitalismo "central" compativel com o desenvolvimento do capitalismo (cada vez menos) "periférico". Tendencialmente, o capitalismo "central", enquanto modelo global de criação e de distribuição de riqueza, torna-se vítima do seu proprio sucesso. Quando os países menos desenvolvidos subirem na escala do valor e da inovação, concorrendo com os países de desenvolvimento mais antigo em actividades cada vez mais sofisticadas, o que restará para justificar a superioridade destes últimos países? Resposta: o livre mercado fará com que todos os países sejam, mais ou menos, igualmente ricos ou igualmente pobres. Ou melhor: os países actualmente ricos talvez tenham de ser algo mais pobres e os países actualmente pobres talvez venham a ser mais ricos. Ou melhor ainda: tratar-se-à, de facto, de uma causalidade: os países actualmente ricos talvez tenham de ser mais pobres para que os países actualmente pobres passem a ser mais ricos... Esta será uma conclusão justa de uma globalização inspirada pelo livre comércio e pela lógica das vantagens comparativas. Justa, porém, não significa facilmente aceitável ou indolor para os cidadãos (ainda) privilegiados dos países ricos do centro. E é precisamente por essa razão que existe tanta hipocrisia entre o discurso e a prática dos representantes dos países industrializados na OMC. E é também por essa razão que os resultados dos sucessivos "rounds" de negociações são cada vez mais magros, ao ponto de algumas pessoas temerem a falência da própria OMC, como organismo de concertação multilateral, e o regresso ao bilateralismo e, no fim de contas, ao proteccionismo...
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