sábado, março 08, 2014

Salários dignos, o Estado Social e a “Gestão por Objectivos” de Peter Drucker



Embora os exemplos que se seguem se refiram à realidade americana, creio que as políticas de trabalho aqui mencionadas (nomeadamente os conceitos de "Gestão por Objectivos", "Indicador Chave de Desempenho" e Salário Mínimo) são universais – as duas primeiras em princípio boas práticas, mas que são cada vez mais abusadas por maquiavélicos obcecados pelo poder.

Em 2012, 1,6 milhões dos trabalhadores americanos ganhavam o salário mínimo federal vigente e 2 milhões recebiam salários abaixo do salário mínimo; ou seja: estamos a falar de 4,7% da classe trabalhadora a receber ou o salário mínimo ou salários ainda mais baixos e como o custo de vida difere muito de região para região, o que numa localidade pode ser o suficiente para mal manter a cabeça acima de água, noutra não dá para sobreviver. Por exemplo, o rendimento médio dos trabalhadores de fast food é $8.69 por hora, uma ninharia que não dá para sobreviver e também não têm direito a férias, seguros, ou a baixas por motivos de doença.

http://www.prosebeforehos.com/wordpress/wp-content/uploads/2012/03/minimum-wage-rent-map1.png 


Já lá vai o tempo em que a grande maioria dos empregados nos restaurantes de fast food eram adolescentes que ganhavam muito pouco mas que era o suficiente para suplementar a mesada; hoje, a média de idade dos trabalhadores de fast food é de 29 anos. Depois ainda nos admiramos quando o empregado de cozinha no restaurante X vai trabalhar com hepatite B, ou do empregado no restaurante Y que usa o próprio pénis para barrar maionese na sandes do insuspeito cliente, ou do empregado do restaurante Z que urina no café? Já para não falar em constipações, gripes e trabalhadores nos mais diversos sectores cheios de catarro que não faltam ao trabalho para poderem ser pagos ou por terem medo de ser despedidos? Depois ainda nos admiramos de cada vez mais pessoas que não sofrem de SIDA e que nunca se injectaram com drogas aparecerem, de um momento para o outro, infectadas com a bactéria da tuberculose?  

Os argumentos contra o aumento do salário mínimo são sempre os mesmos: it cuts into profits; e daí? Não são “custos salariais” uma coluna no Income Statement das empresas, assim como todas as outras despesas próprias de quem tem um negócio? Depois há políticos que defendem que, “(...) if we took away the minimum wage (…) we could (…) virtually wipe out unemployment (…) because we would be able to offer jobs at whatever level.Ora aqui está a solução: vamos todos trabalhar 12 horas por dia com um sorriso de orelha a orelha a troco de uma tigela de arroz – haja paciência!
 

Quando as empresas decidiram que a sua principal responsabilidade era com o accionista, quando os lucros trimestrais tornaram-se o principal objectivo e os investidores tornaram-se semideuses, todos os anos aparecem novos esquemas elaborados exclusivamente para tirar algo ao trabalhador e aumentar a “bottom line” da empresa, de modo a que os lucros aumentem e o valor das acções subam e o investidor fique satisfeito. O que interessa, hoje em dia, não é se a empresa continua a criar lucro, o que importa é se esses lucros baixaram ou subiram em relação ao trimestre anterior. Criam-se golos cada vez mais altos, puxa-se a baliza cada vez mais para trás, torna-se a vida do trabalhador cada vez mais stressante e quando estes objectivos não são alcançados, quem sofre é a classe trabalhadora: cortes, cortes e mais cortes. 

Depois o chefe faz um spreadsheet muito elaborado para mostrar ao Conselho de Administração como conseguiu poupar tanto dinheiro e como merece um aumento salarial chorudo – não estou a inventar isto; já por mais de uma ocasião que presenciei esta pouca vergonha.

O resultado desta preocupação constante com resultados a curto prazo, “Key Performance Indicator / KPI “ e “Management By Objectives/ MBO ” está bem à vista: 

1-) Salários estagnados há mais de 30 anos enquanto o custo de vida continua a aumentar.
2-) Uma percentagem obscena de “underemployment” (ou porque o trabalhador tem qualificações a mais para a função que desempenha, ou porque tem dois ou três trabalhos para sobreviver . Isto é cada vez mais comum e nada disto entra nas estatísticas das agências governamentais sobre o emprego – ou falta dele.)
3-)Os que sobrevivem ao desemprego têm por obrigação estar gratos aos “job creators”e manter uma certa imagem profissional da qual fazem parte um sorriso e expressão agradável  enquanto desempenham as suas funções a um ritmo cada vez mais vertiginoso: vite, vite, vite. Qualidade? O que é isso, quando a resposta à pergunta “When do you need this by” se tornou, “Yesterday” ?
It’s all about productivity, stupid! Don’t like it? Leave!!!
4-) Dezenas de milhões de trabalhadores que precisam de assistência social para sobreviver. Enquanto isso, a classe de investidores que representa apenas cerca de 10% dos americanos viu o seu rendimento aumentar mais de 400%. É por isso que há cada vez mais trabalhadores e pessoas pertencentes à classe média a receber “food stamps” – eu conheço alguns. Talvez por isso é que hoje em dia estes “food stamps” de selos já não têm nada, sendo agora cartões de débito com um limite mensal e um PIN (código secreto) – talvez para evitar o estigma e a vergonha dos utilizadores nas caixas de supermercado, ou por ser mais fácil e eficaz para a agência emitora, não sei. O que sei é que a balança está de tal maneira desequilibrada, que qualquer dia a maioria dos americanos vive no limiar da pobreza enquanto a classe de investidores continua feliz.
5-) Isto já para não falar no impacto (“hidden costs”) que estas mentalidades e práticas abusivas têm numa sociedade, cultura e país, nomeadamente: o aumento do suicidio, o aumento da taxa de divorcio, e o aumento do consumo de anti-depressivos – sim, porque é isto que frequentemente acontece quando confundimos as urgências da vida. 
  
Quando é que o sonho americano se tornou o caminho para a servidão, esta espiral de morte económica onde os trabalhadores são pagos quase nada para se darem ao luxo de comprar quase nada, para que as empresas possam vender merda cada vez mais barata e de qualidade cada vez mais duvidosa (no fim de contas, quanto pior for a qualidade, mais depressa será o produto substituido, mais depressa as vendas e os lucros aumentam e mais depressa os accionistas ficam satisfeitos; por outras palavras: a razão porque hoje em dia nada presta e nada dura como antigamente). Entretanto, cada vez há mais trabalhadores nos mais variados sectores a receber qualquer forma de assistência social: sejam os tais “food stamps”, ou auxílio nas rendas, ou em creches, ou merenda nas escolas. 

Quando até mesmo pessoas que trabalham não recebem o suficiente para viver, é aos bolsos de todos nós, os contribuintes, que vão buscar o resto. Para quê? Para que as empresas aumentem os lucros e façam felizes uma cambada de inescrupulosos que representam uma percentagem da população cada vez mais pequena. Se o trabalhador recebesse um salário digno, nada disto acontecia. Não se pode defender “a smaller government” com menos assistência social ao mesmo tempo que se grita tão alto contra os efeitos devastatores para a economia do aumento do salário mínimo para um salário digno. Esta é uma equação que não bate certo. MAKES.NO.SENSE.


Olhem para os salários dos CEOs. Não me apanham em nenhum destes restaurantes: não só porque a qualidade e higiene da comida são de questão duvidosa, como também porque não estou para alimentar semelhante pouca vergonha – para não lhe chamar falta de ética.
 

 

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