Redondo como uma bola, o monte emergia sozinho da planície onde os aviões, de vez em quando, subiam e desciam. Eram aviões velhos que faziam um barulho de motor a desmanchar-se. Chamava-se ao monte “o mamelão”, parecia uma enorme teta com que sonhavam, bulímicos, os soldados. Os instruendos olhavam temerosos “o mamelão” ao longe. Os instrutores diziam que um dia todos tinham de subir até ao cume, custasse o que custasse. E contavam-se histórias do esforço hercúleo que seria necessário, dos mistérios que se iria desvendar durante a escalada, das vitórias e fracassos que ficariam pelo caminho. Lendas.
O aeroporto militar era vetusto. Edifícios cinzentos, perfeitamente cúbicos, com letras garrafais, de códigos enigmáticos, armazenavam material e pessoas de outras guerras. Meia dúzia de gatos-pingados, a maior parte sargentos com tonalidades etílicas, tentavam manter a coisa em funcionamento, para os jovens aprendizes de piloto poderem armar-se em Major Alvega. Alguns passavam aos episódios seguintes da aventura, vôos mais altos a motor a jacto, outros choravam de tristeza e voltavam à terra de ombros caídos, outros ainda resignavam-se à hipótese de, algum dia, fazer de hospedeiro de bordo em companhias low-cost... Sempre andariam acima das nuvens, perscrutando da porta de embarque o que haveria para além da pista dos aeroportos.
A Base estendia-se por uma área enorme, rasgada por longas avenidas desertas. Passava de vez em quando uma viatura militar, espectro pintado de verde escuro. A névoa e a humidade no Inverno davam a tudo aquilo um ar de campo de extermínio. Extermínio da vontade, certamente. No topo do campo, próximo dos hangares, havia as messes dos oficiais e dos sargentos, higienicamente separadas. Por trás da messe dos oficiais havia um pequeno aldeamento com vivendas de boa aparência onde viviam as famílias dos oficiais. Pouco antes das horas das refeições, saíam as esposas, engalanadas pelos melhores vestidos como se fossem para uma festa, a puxar carrinhos de bebé e a trocar trivialidades e bisbilhotices entre si. Naquele mundo tão pequeno e fechado era necessária criatividade, conspiração ou intriga para fazer casos. Mas, alguma coisa se arranjava, entre o alcoolismo do Tenente Vargas ou a traição (real ou putativa) da mulher do Capitão Ramos com o Cabo Semedo. Quando se cruzavam nas alamedas que conduziam às respectivas messes, as esposas dos senhores oficiais e as mulheres dos sargentos odiavam-se cordialmente. Depois da refeição, as esposas continuavam na messe à volta de cafés eternos, a queimar tempo e paciência, exibindo a sua superioridade e alguma luxúria perante os dóceis serviçais.
À noite, na messe dos sargentos, jogava-se ruidosamente à lerpa ou à sueca e bebia-se caudalosamente para afogar o ócio e a inutilidade daquilo tudo. Um dia armou-se grande bronca, com mesas e cadeiras pelo ar. O jovem oficial de dia, de serviço militar obrigatório (SMO), foi chamado a acalmar a borrasca. Era licenciado e instrutor de Matemática nos Cursos de Formação que davam algum vestígio de dignidade à Base. Bastou a sua presença à porta da messe para que os ânimos se esfriassem. Os desgraçados pediram imensas desculpas ao Senhor Professor e, no meio da lucidez que lhes restava, imploraram para que os acontecimentos não fossem objecto de relatório à hierarquia. O rapazinho que estava só de passagem e se sentia tão desgraçado como eles naquela noite kafkiana prometeu clemência desde que fosse tudo imediatamente para a cama. E assim foi.
Um dia, o governo decidiu desactivar a Base porque aqueles terrenos eram demasiado valiosos para tanta inutilidade e em tempo de crise do Estado havia que realizar dinheiro o mais depressa possível. O défice não se compadecia com nostalgias ou crises existenciais curtidas num enorme espaço rodeado por arame farpado e portão de imponência cada vez mais duvidosa, por onde transitavam esporadicamente aviões a cair de podre. Chegaram os promotores imobiliários e deitaram tudo abaixo para construir uma bela cidade, novinha em folha, com prédios de cores garridas e arquitectura pindérica, ginásios, courts de ténis, piscinas, supermercados, bares, restaurantes, etc. Os edifícios cúbicos e cinzentos e as casinhas de estilo salazarento do aldeamento dos oficiais desapareceram bem como os carrinhos de bebé puxados pelas esposas dos senhores oficiais. E “o mamelão” por lá ficou, obviamente. Despertando outros sentimentos e desejos, interrompendo solitariamente a planura daqueles terrenos vastos, entre uma auto-estrada e uma cordilheira que fica antes do mar.
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