Estava sentado no degrau à porta de casa. Era depois de almoço, estava abafado e a rua vazia. Tinha a cabeça cheia do barulho do almoço. Tinham berrado como doidos por causa de doenças, dinheiro, inveja, traição. Tinha chegado ao ponto de estar bem no seu próprio mundo, exausto de desavenças prosaicas, típicas de gente com sangue ainda demasiado quente. As rugas, os cabelos grisalhos e esporádicos, os olhos de cão ferido, as mãos trémulas faziam dele uma estátua de respeito. Esperava que passasse alguém para ter a certeza de que não era o último sobrevivente, de que havia mundo para lá daquele almoço.
A mulher tinha morrido há um ano de uma trombose que a pôs vegetal durante umas semanas, antes de se apagar de todo. Fazia-lhe falta. Andavam às turras de vez em quando, por coisas insignificantes, mas a ternura de uma vida ganhava sempre. Faziam-lhe falta as suas palavras de manhã cedo: "Manuel estás bem?" como se tivesse dúvidas de que ainda estava vivo. Ele respondia: "Passa-me o penico". E ficava tudo aliviado.
Uma mosca pousou no braço. Hesitou em espantá-la. Afinal era uma mosca aparentemente interessada no seu suor e sangue. Deixou-a passear na pele, observando os movimentos repentinos do animal. Voou antes de o morder. Por clemência ou por desilusão pela qualidade da presa. Achou que foi por clemência e sentiu-se um bocadinho amado. Por uma mosca.
Saiu à pressa um dos netos, sem perceber que quase tropeçava no "velho". Pegou na mota e desapareceu a fundo para lá do calor e das discussões do almoço. Depois saíram todos. O filho saudou-o de repente. E continuou no degrau da porta à espera de alguém que lhe desejasse bom dia ou que se queixasse do calor. Pelo menos, uma mosca.
1 comentário:
Coitadito do ti Manel, apetece-me dar-lhe um abraço...
(ainda um dia hás-de dizer onde vais buscar estes contos; tens uma imaginação do caraças e um dom para a escrita de se lhe tirar o chapéu).
:-)
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