segunda-feira, janeiro 09, 2012

Todo o mundo é composto de mudança

Dá a impressão de que estamos na acalmia antes da tempestade. Estranhamente, as pessoas não se manifestam, não telefonam para protestar, para pedir clemência. O silêncio do telefone e o vazio da Inbox tornam-se suspeitos. Parecem todos cansados, rendem-se, querem sobretudo paz, pedem uma pausa à crise, fazem de conta de que tudo isto não passa de um pesadelo: a normalidade segue dentro de momentos... Mas, estamos aqui porque antes não tinhamos normalidade, mas sim ilusão de bem-estar.

Deixem-nos em paz. Deixem-nos estar tranquilos. Não venham com teorias do apocalipse nem de concorrência desenfreada entre indíviduos e nações. Não venham com ameaças insuportáveis que nos fazem olhar para o futuro com uma angústia endémica.

Como era bom há uns anos, sem crises nem bloqueios, numa doce estabilidade.

O problema é que nunca foi assim. Olhemos para os últimos 40 anos: de crise em crise, de sobressalto em sobressalto, de credo em credo: guerra fria, fim do mundo, Vietnam, crise do petróleo, desemprego e inflação, queda do Muro, tatcherismo/reaganismo, terrorismo, bolha da internet, crise da dívida dos chamados países emergentes (México, Argentina, Malásia, Brasil), guerra às portas da Europa (ex-Jugoslávia), bolha imobiliária, crise da dívida privada, crise da dívida pública...

“Todo o mundo é composto de mudança”. O mundo sob hegemonia capitalista é feito de crises. Não é defeito – é feitio! Trata-se de qualquer coisa intrinseca ao sistema, com a qual temos de viver, integrar no nosso quotidiano e nos nossos projectos a longo prazo. Apesar de, a longo prazo, estarmos (obviamente) todos mortos (Keynes dixit).

A alternativa é a Revolução. Mas a multidão já não acredita em causas colectivas. A hegemonia do capitalismo devolveu as pessoas ao bom senso e ao pragmatismo das continhas bem feitas, destruiu as utopias, tornou-as rídiculas face às supremas agruras dos quotidianos individuais, das ambições de consumo. A solidariedade é pelos cães e gatos abandonados, pelas doenças bizarras que atingem crianças distantes, dos outros, pela fome e pelas violações de direitos humanos no Darfur e na India, bem longe do conforto da sala de estar com ecrã de plasma. A solidariedade esgota-se na esmola aos pobrezinhos, com afastamento higiénico.

O capitalismo dos últimos anos des-socializa as pessoas. Os problemas são de cada indivíduo, de cada família, transformados em atletas com diferentes scores na corrida permanente por um sucesso homologado. A prova é que, mesmo nas maiores dificuldades, há quem se safe, quem enriqueça, o que quer dizer que a maioria só tem de esforçar-se para ser um vasto bando de campeões.

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades."

Luis Vaz de Camões

3 comentários:

Teresa disse...

Na tua opiniao, em que diverge a actual crise ocidental da crise que certos paises da America Latina e Asia atravessaram nas ultimas duas decadas do seculo passado?
Confesso nao ter estado muito atenta a crise nesses paises (para alem dos "sound bites" do costume na comunicacao social) mas nao deixo de ver certos paralelismos, nomeadamente: desvalorizacao monetaria, contagio, falencias e resgates a instituicoes bancarias. O que nao me lembro foi da pressao que os mercados financeiros (bancos, seguradoras, fundos de pensao) exerceram sobre os "elos fracos" desses continentes como estao agora a fazer sobre os "elos fracos" na Uniao Europeia: PIIGS (odeio este acronimo!).

I believe that we can learn valuable lessons and draw equally valuable conclusions from past mistakes, but I'm yet to see (or hear) of a comparative study between the turmoil that countries such as Argentina, Mexico, Brazil, Japan and Malaysia endured in the 80's and 90's and what most of the western world is experiencing now. It's almost as if that crisis never existed or it's so different from today's that no comparison and contrast analysis is warranted.

[ Nunca trabalhei em M&A, mas posso dizer que a cultura bancaria aqui descrita e' a que vivo todos os dias. "I am really, really happy to have done this for a few years. Very proud to have survived among the best and brightest. It's like bootcamp in the army. I am coming out of this much stronger. It pushed me to go back to the basics; to what is really important for me, as a human being. I have discovered what my values are, and now I am acting on them. I am leaving banking." Acho que esta cultura de “greed”, do salve-se quem puder e de ignorar meios para atingir fins tem muito a ver com o que se esta’ agora a passar. Creio que nao devemos deitar exclusivamente as culpas para a “ ilusão de bem-estar” de outrora: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/joris-luyendijk-banking-blog/2012/jan/11/ex-mergers-and-acquisitions-banker?CMP=twt_gu

O que pensas?

Miguel disse...

Acho que os sintomas são idênticos, mas as causas diferentes. Aconselho-te a leitura de "The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008" de Paul Krugman (http://www.amazon.com/Return-Depression-Economics-Crisis-2008/dp/0393071014/ref=sr_1_2?s=books&ie=UTF8&qid=1326356781&sr=1-2#reader_0393071014).

O problema actual da Europa é agravado pela conjugação de múltiplos factores tais como a criação de uma zona monetária com pés de barro e a exposição a tendências globais que põem em causa o modelo de especialização e de repartição que emergiu do pós-guerra. Temo que uma grande parte da Europa se tenha de resignar à estagnação, senão mesmo ao declíneo.

Quanto à segunda parte do teu comentário, aconselho-te o post de ontem "Todos atletas em vez de cidadãos".

Teresa disse...

Miguel - obrigada pelas sugestoes e pelo esclarecimento. Ja’ encomendei o livro de Krugman. Quanto ao post que referes ja’ o tinha tentado ler mas acontece que, por muito esforco que faca, o meu nivel de compreensao do espanhol ainda consegue ser inferior ao do portugues. Consigo, por vezes, entender “the gist” (ponto principal?) do que leio, mas nunca tanto como gostaria - e as traducoes do Google Translate sao de rir. Conheces algum site onde as traducoes facam mais sentido? De qualquer maneira, por aquilo que entendi, posso dizer que desconhecia essa frase da “Maggie” mas nao me surpreende tal analogia. Talvez a alcunha de “iron Lady” lhe tenha vindo da frase “ Allí donde existía el ciudadano menesteroso, debe advenir una voluntad de hierro.”

Ate’ recentemente, pensava que esta era uma ideologia exclusiva aos paises anglo-saxonicos (sobretudo EUA e GB – porque o Canada, por exemplo, ja e’ muito diferente). Infelizmente, este tipo de cultura e mentalidade nao e’ para mim. I’m all for personal responsibility, for entrepreneurship, for success, for trying our best, for self- improvement, for perseverance…for an iron will; o que nao concordo e’ com a ideia de que o individualismo e’ mais importante do que “societal values” nem tao pouco nessa mentalidade de “me first”, na necessidade de agatanhar os outros para sobreviver no trabalho (como o artigo do Guardian demonstra e eu verifico diariamente), ou que apenas os “mediocres” (aka “perdedor”, “preguicosos”, “losers”, ”deadbeats”, “public workers” ) necessitam do estado social - teorias defendidas no passado por Reagan e Thatcher e hoje por elementos de direita que se referem a estes dois com um saudosismo impressionante. Sou contemporanea dos dois, comecei a minha vida profissional nos anos 80 (quando ambos governavam os respectivos “imperios”) mas, ao fim destes anos todos, ainda nao me habituei a este tipo de cultura/mentalidade/politica. Nem oito nem oitenta.

Chegamos a uma certa idade em que a frase “what’s the point?” is a constant reminder of the status-quo. And I don’t like this status-quo!