O que se está a passar com a redução dos ratings confirma a ideia de que os seres humanos e as instituições se adaptam sempre para preservar a condição essencial de tudo o resto, ou seja, a sobrevivência! Até há algum tempo, dizia-se que a perda de rating de países como os Estados Unidos ou a França provocaria o fim do mundo. Nada disso nos Estados Unidos que até melhorou a criação de emprego recentemente. Quanto à França, dizia-se que se estaria perto do colapso porque tudo o que não fosse AAA, implicaria que um dos principais países do Euro deixava de ter acesso fácil ao mercado internacional da dívida e as necessidades de ajuda poderiam ser tais que os que mantivessem AAA não teriam capacidade de pagar, mesmo que a sua generosidade se tornasse inesperadamente infinita. Ora, há já algum tempo que a França anda a pagar taxas de juro que não são de AAA, mais de 1% acima das taxas da virtuosa Alemanha. Os investidores não precisaram das agências de rating para dizer à França que ter dívida sua não é propriamente a mesma coisa do que ter dívida alemã.
Porquê a importância do AAA? Porque há entidades (como os fundos de pensões, as companhias de seguro, os fundos soberanos) que seguem uma política de investimento que implica a detenção de uma certa percentagem de activos com rating AAA. Portanto, as obrigações francesas (que apesar de tudo se mantém em AA+, a segunda melhor classificação numa escala de 22 níveis) deixaram de ser elegíveis para esses investidores que se concentram no que resta de AAA, cujas taxas de juros são assim cada vez mais baixas, enquanto os ex-AAA pagam cada vez mais porque são objecto de outro tipo de procura. De recordar que a Alemanha pagou uma taxa de juro negativa numa recente emissão de dívida, ou seja, os credores estão preparados a pagar ao devedor para ter um activo cujo capital permaneça alegadamente fora de qualquer risco.
A perda do rating soberano da França é mais um episódio lamentável neste processo de corrosão gradual e penosa da zona euro mas não representa (ainda) o fim da linha. Os bancos e as empresas francesas vão nos próximos dias ser também downgraded, o que implicará maiores dificuldades de financiamento e seguramente taxas mais elevadas.
Por seu lado, as consequências políticas são enormes. Faltam mais ou menos 3 meses para as eleições presidenciais em França e os adversários não tardaram a dizer que isto não é o fracasso da França, mas sim o fracasso do candidato Sarkozy. Mas, a questão complica-se ainda mais para o lado do famigerado eixo franco-alemão. Os interesses dos elementos do binómio tornam-se cada vez mais divergentes. A França afasta-se da “virtude” e torna-se mais próxima dos “criminosos” do Sul. A fratura entre essas duas realidades aumenta e a vontade ou capacidade dos virtuosos (Alemanha, Holanda, Finlândia e Luxemburgo, os únicos ainda com AAA) de ajudar os outros reduz-se a olhos vistos. Assim, os outros só podem contar consigo próprios, prosseguir na “via cruxis” da austeridade (até à derrota final?) ou criar um outro euro, um só deles, bem diferente do euro dos mais fortes que será cada vez mais um marco. Só que, com esse retorno ao marco (mais forte do que a média que representa o actual euro) os próprios alemães terão a perder porque as suas exportações se tornam mais caras e as importações mais baratas e os ganhos de produtividade proverbiais dos alemães têm limites. De resto, um outro efeito interessante é que, por enquanto, quanto pior vão os outros e isso se reflita na quebra do euro (designadamente face ao dolar), melhor para a competitividade dos alemães... Poder-se-ia dizer que esse é um mecanismo automático de regulação cambial de que acabam por beneficiar todos... na condição de lhes sobrar alguma coisa para exportar!
Outras situações igualmente (senão mais) preocupantes são as da Espanha e da Itália, sobretudo deste último país, cujo rating passa para BBB+, ou seja, dois níveis acima de lixo e oito abaixo de AAA. Se o Estado tem esse rating, muitos bancos e empresas transalpinas terão ratings de lixo, isto é, inferiores a BBB-. Quando as taxas associadas a esses níveis de rating ultrapassam um determinado limiar (lembram-se dos 7% do Ministro Teixeira dos Santos?) a dívida deixa de ser sustentável, isto é, os países passam a trabalhar quase só para pagar juros e o capital por lá vai ficando em contínua renovação ou aumento, como se fosse equity, o que não agrada nada aos credores que deixam de emprestar e tentam por todos os meios recuperar o que já têm em risco. E aí aparece a Troika a injectar o dinheiro que permite a saída dos outros, na condição de o malogrado país executar políticas que, segundo a mesma Troika, tornem finalmente possivel a redução da dívida. Tudo isso nalguns casos vai a par com reestruturações de dívida, o que quer dizer que os credores actuais têm de aceitar algum sofrimento sob a forma de perdão de parte da dívida, extensão de prazo de pagamento ou alteração das taxas de juro. Pois bem, a Itália está a aproximar-se desse pesadelo bem conhecido de gregos, irlandeses e portugueses. O problema é a dimensão faraónica do problema italiano. Onde é que a Troika vai buscar tanto dinheiro? Tanto mais que o Fundo Europeu de Estabilização (a que aparentemente se seguirá o Mecanismo Europeu de Estabilização com mais dinheiro, daqui a um ano e meio...) tem recursos limitados e o seu acesso ao mercado também é seriamente afectado pela perda de rating dos seus principais patrocinadores...
Enfim, está aqui uma embrulhada dos diabos. Mas, como comecei por dizer, “os seres humanos e as instituições adaptam-se sempre para preservar a condição essencial de tudo o resto, ou seja, a sobrevivência!”. Alguns indígenas chamariam a isso resiliência, palavra odiosa que vem directamente da “resilience” dos pérfidos da Albion...
Sem comentários:
Enviar um comentário