terça-feira, março 13, 2007

A eira da coragem

Um dia, um gaiato desafiou-me para a pancada. Tinhamos, talvez, uns 10 ou 11 anos e não me recordo do motivo da borrasca. Na altura, terá sido qualquer coisa de extremamente grave... segundo os padrões de putos cheios de orgulho àcerca do jogo da bola, do pião ou do berlinde. Ele era o atacante, eu a vítima. Por incrível que pareça, até aí, nunca tinha jogado à porrada com ninguém. Era já na altura um pacifista, sem o saber. Não um cobarde, como se verá já a seguir...

O desafio foi solene: com lugar e data precisa para o duelo. Só nós os dois para esgrimir a murro e a pontapé as razões que as palavras não tinham conseguido acalmar (de facto, putos e dialéctica não são coisas que combinem facilmente). A coisa perturbou-me. Passei a véspera em sobressalto, dialogando com a coragem, metendo à prova a auto-estima, pensando seriamente em não ir, contendo a vontade de urinar de medo. Ainda por cima, o tipo era mais forte do que eu... Um simples murro e ficaria K.O. Com a dignidade a sangrar e as lágrimas a escorrer cara abaixo. Via-me prostrado, caído no cimento quente da eira que tinha sido escolhida como ringue, pontapeado por um agressor impiedoso, abandonado à minha derrota, a pior coisa que alguma vez teria sucedido em todo o mundo.

Não obstante essas precoces dúvidas existenciais e depois de uma noite de insónia e de pesadelos, tomei uma decisão dramática: expor-me ao risco de ser violentado no corpo e na alma. Tinha de ir à eira do heroísmo enfrentar o algoz com o máximo das minhas forças. Encaminhei-me para lá com uma pontualidade Britânica, carregando o mundo às costas, as pernas tremendo como varas verdes. Até o sol parecia escuro... Sentei-me no muro de pedra que cercava a eira e esperei pela hecatombe. Olhava o chão claro de cimento, imaginando golpes geniais que finalmente fariam a surpresa e que me dariam uma vitória lendária. Mas, a convicção não era muita e essas fantasias derretiam-se como o suor frio que me corria pela cara. Continuei à espera levantando de vez em quando a cabeça para ver se o monstro chegava. O tempo passava devagar, demasiado devagar, e o tipo não aparecia. Olhei para o relógio e passavam 15 minutos da hora concordada. Mais um bocado e passavam 30 minutos... e da ameaça nem sombra. Comecei a pensar que se tinha cortado, que tinha receado a minha insignificância. Essa agora! Nada aparecia no horizonte que contrariasse as minhas conjecturas. O catraio de voz grossa tinha-se esfumado e as suas ameaças tornavam-se fúteis como palha. E eu respirei fundo e fui-me dali embora com o passo mais firme do que nunca, contente por ter lutado contra o medo e por ter enfrentado a possibilidade de levar um histórico enxerto de porrada.

No dia seguinte, na escola, o desgraçado cruzou-se comigo cabisbaixo com a vergonha a vergar-lhe os ombros. Nem uma palavra. Passámos a ser distantes conhecidos.

Foi a minha primeira grande vitória... por falta de comparência do adversário.

1 comentário:

Anónimo disse...

q descrição brutal, até me fez sentir q estava lá ao lado num canto a observar o episódio.. "as aventuras do super miguel"!! a coragem corre na familia..espero;)