Antigamente, os pobres nasciam pobres e sabiam que deviam continuar pobres e morriam pobres. Os ricos nasciam ricos, tentavam aumentar a sua riqueza ou podiam permitir-se esbanjar a riqueza que herdavam e, algumas vezes, morriam pobres. Havia pouquíssimos do que se pode chamar a classe média e esses remediavam-se, geriam a sua vidinha de maneira a não ir para baixo, quer dizer, a não empobrecer. As ambições eram ordeiras e disciplinadas. Ninguém tentava despudoradamente invadir o terreno da outra classe (que, aliás, se chamou, durante muito tempo, "ordem"). Um pobre não roia as unhas a pensar como, algum dia, podia ficar rico porque as barreiras a que isso acontecesse eram intransponíveis. Viviam todos, portanto, mais ou menos tranquilos, acomodados, respeitosos, resignados... salvo quando as condições dos pobres eram insuportavelmente miseráveis. Enfim, não havia grande stress. Cada macaco no seu galho...
Depois veio a industrialização, a urbanização e a democracia. Então, os pobres começaram a acreditar que podiam enriquecer, que através do trabalho, da inteligência, da educação escolar (que se popularizou), da astúcia ou da vigarice podiam ascender ao galho dos ricos. Os ricos começaram a temer a invasão dos seus privilégios pela escumalha. Organizaram-se para defender a élite, cada vez com menos sucesso. Deram a volta ao texto acolhendo os pobres e remediados com valor e obedientes para os ajudar a fazer dinheiro. A classe média foi aumentando, tornou-se obsessiva com a sua pequena propriedade, muito sensível ao mínimo sinal de instabilidade. Aconteceu a mobilidade social ascendente. E então, sendo excepções, os exemplos de pobres que chegaram a ricos foram proclamados como regra pela imprensa e pela literatura apologética do sucesso. De repente, toda a gente esperta e empreendedora podia transformar-se em Bill Gates, Belmiro de Azevedo, Richard Branson ou Cavaco Silva. Todos mas mesmo todos podiam ascender ao Olimpo da riqueza, da visibilidade e do poder...
Esta ficção, contudo, provoca agressividade e stress porque, para ficar com as migalhas que sobram dos que continuam protegidos, é necessário progredir à cotovelada, por cima dos semelhantes que cultivam idênticas ambições. A isto também se chama mérito. A democracia e a ilusão da igualdade de oportunidades são fontes de ansiedade e de pequenas guerras quotidianas, numa sociedade em que os projectos colectivos perderam no confronto com os percursos individuais. A isto também se chama liberdade.
No parágrafo anterior é preciso sublinhar as palavras "ficção" e "ilusão" que, ignoradas, conduzem a tantos défices de auto-estima e a tantas doenças do foro psiquiátrico. Porque disso se trata: de ficção e de ilusão. As élites, de várias cores e filiações a que se acede através de "qualidades" inacessíveis à maioria ou de probidade moral discutível, defendem-se com exímia competência e deixam à neo-plebe as migalhas para lhe dar a impressão de que também ela é convidada ao banquete do sucesso democrático.
Não quero deixar a impressão de que a alternativa seria regressar aos "bons velhos tempos" da aristocracia, tão cara a Nietzsche. De facto, ele odiava a mediocridade da mediania gerada pela democracia. A alternativa é a ousadia das utopias, gastas por executantes desonestos e, por fim, assassinadas em Berlim na noite de 9 de Novembro de 1989.
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