terça-feira, novembro 14, 2006

Auto-biografia

Jogando no terreiro da escola primária, descobri que nunca seria um grande jogador de futebol. Divertia-me e coisa e tal, correndo atrás do esférico de borracha desbotada, deslumbrava-me com as proezas dos outros, chegava a ter inveja deles. Caía em mim e percebia que nunca seria um às da bola. Cada um é para o que nasce, n'est-ce-pas? Seguindo os discursos dos políticos lá da terra, em tempo de eleições autárquicas, descobri que nunca seria presidente da câmara nem político de qualquer circunscrição. Tinha ideias àcerca do que estava mal e da maneira de mudar o mundo, mas achava que existia qualquer coisa de imoral na política e, por isso, dei o fora. Depois, fui para a universidade e, assistindo incrédulo às guerras de alecrim e manjerona que se travavam entre os doutores, conclui que também aquilo não era para mim. Fui para a tropa e fui tratado abaixo de cão por tipos orgulhosos da sua má educação e ignorância que tratavam a mãe de todos os recrutas de meretriz, com a convicção dos profetas. Depois da recruta, ensinaram-nos as técnicas mais rebuscadas da malandrice e do desenrascanço. Não, aquilo não era para mim. Contei, um a um, os dias que faltavam para sair daquele campo de concentração dos maus costumes. A seguir, fui para o mundo dos grandes, dos sérios, dos profissionais, dos ambiciosos e endinheirados. Talvez por não ser essencialmente diferente deles, apanhei o combóio e fui andando, andando, andando. Parei nalguns apeadeiros para ver a paisagem em volta, para ver o combóio que partia, mas nunca perdi o combóio seguinte. Quero convencer-me de que não sei qual é o destino final e mantenho um certo espírito crítico, quer dizer, continuo a fazer de "enfant terrible", sem pôr em causa a arquitectura do sistema que me paga os caprichos... No fundo, soube poucas vezes o que queria, mas soube sempre, mais ou menos bem, o que não queria.

1 comentário:

tnr disse...

Um dos meus posts favoritos. De natureza pessoal e com o teu "velho" sentido de humor e a franqueza que sempre admirei e de que me lembro tao bem.

Nao mudes, Miguel; nao mudes.