O livro "A Sangue Frio" de Truman Capote (1966) lê-se de um fôlego só. Não vi o filme “Capote” que se inspirou no livro e que foi galardoado este ano com o Óscar para o melhor actor (Philip Seymour Hoffman).
O livro conta a história do assassinato de uma família de 4 pessoas no final dos anos 50 numa pequena cidade do Estado do Kansas por dois rapazes perdidos na vida e na morte. O crime ocorre em circunstâncias rocambolescas e quase incompreensíveis, na sequência da tentativa de roubo de um cofre que, afinal de contas, nunca existiu. No fim, os ladrões-assassinos levam consigo apenas cerca de 50 dólares e um medo tépido de serem apanhados e condenados à morte, o que acaba por acontecer.
Truman Capote era jornalista e escreveu o livro em estilo jornalístico. O vocabulário é simples e escorreito, as frases fulgurantes. O que prende é o interesse da história e o ritmo em que é contada. As 370 páginas da edição "Livros do Brasil" devoram-se, cada página pedindo a leitura imediata da seguinte.
Trata-se de um retrato impiedoso da América daquele período, da coexistência de mundos incrivelmente diferentes num mesmo, imenso território, onde os foragidos se movem sem descanso à procura de uma paz impossível. O puritanismo e a rigidez religiosa embatem estrondosamente na extrema miséria dos falidos de um sistema que não tolera o fracasso nem a transgressão.
É um livro naturalmente angustiante e triste que nos coloca perante a crueza e o "non-sense" de uma maldade que quase apetece desculpar. Maldade que se explica por uma acumulação de traumas, fantasmas e fracassos que a sociedade ajuda a produzir, mas que não perdoa.
Perry - um dos criminosos - é um rapaz sensível, meio poeta, que transporta consigo uma mala cheia de recordações e de abandonos. Filho de um cowboy e de uma índia belíssima que passam o princípio da sua vida em comum, muito felizes, a participar em "rodeos" pelas planícies da América profunda. O idílio acaba e o casal separa-se. A Índia fica com os quatro filhos e torna-se alcoólica. O cowboy foge para o Alasca e lança negócios condenados à falência. Dois dos filhos suicidam-se, uma filha faz de esposa irrepreensível para resgatar o passado maldito da família e Perry transforma-se em assassino… por acaso…
Capote era jornalista, intelectual, homossexual, também ele abandonado na infância pela mãe. Permaneceu no Kansas 5 anos a seguir o caso muito de perto e a recolher material para o romance. Entrevistou os criminosos e acabou por ter relações intensas e profundas com Perry, com quem se identificou psicologicamente. Uma possível amizade sincera cedeu rapidamente o lugar ao puro interesse de Capote em extrair de Perry o máximo de informações antes da execução da personagem central do livro.
Capote viveu tão fortemente o romance e meteu tanto de si próprio (e da sua moralidade) na sua elaboração que, após a publicação em 1966, escreveu pouco mais, deixou-se cair em histórias mais ou menos sórdidas de jet-set e morreu alcoólico em 25 de Agosto de 1984 em Los Angeles, com 60 anos. "In Cold Blood" é um dos mais famosos "best-sellers" internacionais.
3 comentários:
Eu comprei o livro logo a seguir a ver o filme (porque este deixou-me mesmo curiosa em relação a ele) e gostei imenso de ler, é mesmo daqueles livros que nos deixam entretidos e com vontade de avançar para a página seguinte. E a história está contada com tantos promenores e detalhes que quase parece ficção, portanto o trabalho de investigação de Capote também é de louvar.
O trabalho de investigação foi colossal. Passou cerca de 5 anos a recolher informações. Mas, o que me impressiona mais é a espécie de fusão entre Capote e os protagonistas, em particular, Perry Smith. Capote quase se meteu na pele do outro como se o outro fosse uma versão absolutamente possível dele mesmo. Os seus traumas e fantasmas encontraram refúgio nesse contacto vertiginoso. A consequência foi também ele se ter condenado a uma auto-destruição lenta e irreversível. No fundo, o romance tem mais de auto-biográfico do que se possa pensar. E, considerando a espessura e crueldade da história, isso é algo perturbante.
Existem também críticos que referem o oportunismo de Capote no sentido de que compôs uma espécie de amizade com os criminosos, fez chantagem com eles, simplesmente para lhes extorquir as informações de que precisava para atingir a glória com um best-seller...
Há ainda um outro aspecto da América que ressalta do livro e que me merece um comentário. A América é uma terra de excessos no que se refere ao sucesso. A América exalta e glorifica o "Number 1" e ostraciza tudo o resto. As pessoas, em particular os jovens, sofrem uma enorme pressão para ganhar, para ganhar sempre, para serem ricos e bem sucedidos. Trata-se de uma sociedade ultra competitiva baseada essencialmente em business. A vida é business e o business é vida. "Ficar para trás" é quase vergonhoso e, explicita ou implicitamente, punido. Como se o ser humano fosse menos humano em caso de fracasso ou de mediania, segundo os canônes dominantes do sucesso.
Não quero com isto fazer o elogio da preguiça, da resignação ou da mediocridade. Cada um se deve esforçar por ser bom na vida em geral e nalgum sector de actividade em particular. A excelência é redentora e fonte de auto-estima e, por isso, se deve perseguir. Fazer muito bem o que se gosta de fazer ou o que se deve fazer não tem mal nenhum. Pelo contrário! Mas, cada ser humano, por mais aparentemente medíocre que seja, tem uma dignidade, um valor e fontes de beleza e de gratificação que é preciso descobrir e realçar.
Bastará que os indíviduos exerçam a sua liberdade, a sua iniciativa e a sua criatividade sem agredir os outros, para merecerem um lugar condigno na sociedade, sem ter de sofrer ou de serem marginalisados por não partilharem valores dominantes.
Vê o filme... Acho que traduz de forma muito completa quem foi Truman Capote. Não se limita a mostrar o seu lado positivo. Pelo contrário, transmite-nos, tal como no caso dos criminosos, um lado bondoso e um lado maquiavélico/mau.
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