Armando é um cínico. Não sei se, à sua maneira, sofreu muito, se apanhou muitas ou poucas desilusões, se foi traído por amigos e familiares, se teve de se erguer das cinzas várias vezes… A verdade é que é um cínico. Vê tudo negro ou cinzento, não acredita em coisa alguma, está sempre à procura de explicações conspirativas para as situações mais triviais. Para ele, ninguém vai à procura do que quer que seja sem um interesse egoista bem definido. Armando recusa a inocência, as boas intenções, a possibilidade de uma visão ou de um projecto que leve as pessoas a agir de um certo modo. Com os seus olhitos felinos embutidos no meio de uma cabeça em forma de proa de navio, está sempre à procura do mínimo vestígio de "santa ingenuidade". O ser humano é por definição mau. É preciso não construir castelos de cartas àcerca dos sentimentos ou das grandes ideias porque, no fim de contas, emergirá sempre a cupidez e a perversidade. E a decepção. Quanto mais se aceitar esta "verdade" e mais se anticiparem os seus efeitos melhor se estará preparado para enfrentar os dissabores da vida, as trafulhices e os golpes baixos. Porque a vida é feita só disso. Para lhe resistir sem cair na loucura ou no crime é preciso observá-la do alto de uma colina de desprezo.
Armando acha-se injustiçado, perseguido, incompreendido, maltratado. Mas, é de família abastada, sempre viveu à sombra de protecções poderosas, nunca arriscou o que quer que fosse. Saiu directamente da casa da mãe para um colégio prestigioso e desse colégio para uma instituição que lhe paga estupidamente acima do seu trabalho e da sua competência (que não se sabe qual seja). Apesar de se aproximar da idade da reforma é um eterno "enfant gaté" que espezinha o tempo que lhe resta a jogar golfe com outros ricos inúteis e fastidiosos. Acho vergonhosa e intolerável essa sua amargura em relação ao mundo de que é simplesmente um rentista sem carácter.
Depois da morte restará bem pouco de Armando. Os filhos apenas se lembrarão dele, com um sorriso de desdém, pelo dinheiro e as casas que lhes vai deixar. A mulher continuará a pintar as unhas no salão forrado a damasco, imperturbável, sem se aperceber do vazio da poltrona ao lado.
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