Era uma vez um rapazinho que nasceu em Marselha. Os pais argelinos chegaram a França numa tarde sombria e húmida de Inverno. Aquele sítio não tinha nada a ver com os grandes espaços do Norte de África, com o cheiro a especiarias da aldeia de onde vinham, com o pó que se levantava em dias de vento do deserto.
O rapaz cresceu a desconfiar da generosidade das pessoas grandes e louras que o rodeavam. Aprendeu que se sobe na vida também à dentada. Era forte e orgulhoso. Prometeu a si mesmo que um dia saciaria a sua fome de sucesso.
Descobriu que tinha jeito para jogar à bola. Fugia da escola para jogar com os amigos no terreno pelado por trás do bairro modesto onde vivia. Começou a participar em campeonatos regionais e um dia foi descoberto pelo "olheiro" de um clube nacional. A troco de pouca coisa foi para Cannes. Conquistou a cidade, o país, a Europa e o mundo. Passou a ser uma referência de talento, força e obstinação. Fizeram dele uma espécie de paradigma do sucesso. Como estava longe o dia triste e cinzento em que os seus pais tinham desembarcado em França, provenientes de uma África que lhes continuava, apesar de tudo, colada à pele ! Também se disse que, por trás do seu ar convicto, tranquilo e simpático, se escondia um autêntico “tueur”, isto é, um predador sempre à caça de glória e de reconhecimento. Era de facto insaciável e, de forma discreta e inteligente, foi fazendo tudo para deixar indelevelmente escrito o seu nome nos livros de história do desporto e, talvez, de muito mais. O rapazinho de origem argelina tinha-se transformado num ícone, recebido por ministros e presidentes, o que não o impedia de vender automóveis e desodorizantes na televisão.
Um dia, quando pensava acabar a sua carreira em apogeu, conquistando o segundo título de campeão do mundo, transportando a sua equipa às costas até à final, depois de um início de prova desastrado, viu-se confrontado com uma daquelas situações que podem fazer do mais comum dos cidadãos um assassino temível.
[conheço um Juiz que acha que quase todos os seres humanos se podem tornar assassinos, dependendo das circunstâncias extremas que possam enfrentar]
Debaixo da pressão de um estádio imenso e eufórico, de um resultado que não atava nem desatava, de um cansaço insuportável, raivosamente consciente dos seus limites, ouvindo insultos em catadupa de um adversário, o nosso rapazinho que se tornou Estrela do Universo borrou a pintura e ferrou uma cabeçada no peito de um Italiano insidioso perante centenas de milhões de espectadores, sendo expulso do jogo. Na vertigem de um segundo, passou de herói a criminoso, de cavalheiro a vilão. Apagou-se uma auréola que estava destinada a ficar para a posteridade. O nosso quase-Super-Homem, a máquina de sucessos, tornou-se apenas homem...
A sua equipa perdeu nas grandes penalidades e a linha finíssima que divide os extremos da vida tornou-se ainda mais fina e incompreensível nesses minutos fatídicos da final do Campeonato do Mundo de Futebol.
1 comentário:
q modo poético de ver a coisa...
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