por Mário Bettencourt Resende
Jornalista
"Os oito séculos de História de Portugal estão ainda longe de apagar a periferia para onde a Geografia nos remeteu. Os raros períodos de grandeza e prosperidade tendem a surgir como epifenómenos sem sequência. Dir-se-á que os Descobrimentos e o ouro do Brasil deixaram marca, mas fica sempre uma sensação amarga de país de oportunidades perdidas. Nas décadas mais recentes, adormeceu-se na ilusão de que os imensos fluxos de fundos comunitários fariam os milagres que séculos de governação doméstica não conseguiram. O resultado está à vista: embora o Portugal do século XXI seja bem melhor do que transparece da actual onda de depressão colectiva, estamos ainda longe dos índices de desenvolvimento dos nossos parceiros europeus e, para reforçar a preocupação, o ritmo dos avanços ameaça alargar essa distância.
O complexo da periferia conduz, com frequência, a uma valorização excessiva das opiniões alheias sobre o País. Exultámos quando as gazetas externas nos consideravam o "bom aluno da Europa comunitária", flagelamo-nos ou rompemos em onda de indignação pátria quando um escriba estrangeiro traça um retrato menos abonatório do que por cá se passa. Uma apreciação positiva no Financial Times sobre a política económica faz inchar de satisfação os "maestros" indígenas, uma entrevista de página ou um editorial no El País são cuidadosamente conservados para trunfo em próxima campanha eleitoral. Percebem-se os reflexos, sobretudo nestes tempos em que a margem de manobra interna está condicionada por decisões tomadas algures, mas a verdade é que a periferia dificulta a redução dos episódios à sua dimensão adequada.
Neste domínio, e para os apreciadores do género, recomendo dois textos publicados recentemente na imprensa britânica, reveladores de como a Europa "civilizada" nos olha ainda como um lugar exótico, situado no extremo remoto do Continente. É certo que se trata de "jornalismo de viagem", tendente à caricatura na tradição do humor anglo-saxónico e sem preocupações de análise económica ou sociológica rigorosas. E também é verdade que os ingleses ainda correm o mundo sonhando com o império que perderam para os norte-americanos no final da Segunda Guerra Mundial - e tudo isso ressalta de pinceladas literárias onde se adivinha a nostalgia de um planeta do passado, quando Washington contava bem menos do que Londres. Não existe mais, sequer, a própria Inglaterra que se julgaria autorizar a severidade arrogante com que boa parte do jornalismo britânico aprecia os quotidianos de outras terras.
O primeiro dos dois textos aqui referidos foi publicado na edição de 11 de Março do The Spectator. Assinado por John Laughland, professor universitário e colaborador habitual de vários jornais, descreve uma visita à quinta da família Symington no Douro vinhateiro. Fascinado com a paisagem, de "uma beleza surrealista", Laughland deslumbra-se com a obra dos seus conterrâneos, capazes de construir e conservar um oásis de civilização britânica - à volta de aldeias pobres onde "toda a gente se chama Joãozinho ou Amanda" (?) e perto de "uma cidade ligeiramente depressiva, como é o Porto, repleta de homens de meia-idade, vestindo camisolas de meia manga" (?). O êxtase da viagem aconteceu durante o picnic anual da família Symington, quando hordas de "crianças louras e labradores amarelos saem, em igual medida, de uma corrente constante de Land Rovers". Para a coisa ser perfeita, presume-se que terá faltado apenas uma caçada à raposa.
No outro artigo, num registo que não é, em substância, diferente, Mylo, o jornalista errante do suplemento de viagens do The Guardian, disserta sobre um fim-de-semana em Lisboa, bem comido e bem regado. Como notou, à chegada, que "toda a gente se veste como professores de Geografia" (?), decidiu ir à Zara (?) para adquirir os trajes indígenas. Depois de uma noite de fados, com continuação no Lux, passeou por Sintra e, a caminho do aeroporto, foi "forçado" pelo motorista do táxi a uma paragem nos pastéis de Belém, onde a multidão à porta "fazia supor uma aparição da Virgem Maria". Os pastéis "estavam OK".
Enfim, são textos que valem o que valem - e vale a pena serem lidos, porque são bem escritos e porque, mesmo nas suas limitações, nos ajudam a entender que é preciso muito mais do que sessões de propaganda do choque tecnológico para convencer os "bifes" arrogantes de que Portugal está a caminho do futuro."
Sem comentários:
Enviar um comentário