Porque hoje foi mais uma excelente noite de contos no Ateneu de Coimbra...
Porque quando cheguei a casa tinha uma prenda de Natal atrasada, aqui vai um conto para vocês, retirado da prenda que abri há pouco e que já li um bocadinho...
Porque quando cheguei a casa tinha uma prenda de Natal atrasada, aqui vai um conto para vocês, retirado da prenda que abri há pouco e que já li um bocadinho...
O caminho
De repente eu estava no caminho. Para onde ia esse caminho eu não sabia. Mas estava no caminho. E caminhava. Havia ao longe luzes que brilhavam. Podia ser uma cidade, podia ser uma miragem. Mas o que não é só isso, miragem, imagem, ilusão? Havia um caminho. O melhor é ir em frente, pensei. Ainda que ninguém possa dizer ao certo o que é a frente e o detrás. Mas vez a frente fosse por ali. Talvez sem que sequer me apercebesse a linha recta, afinal, fosse uma curva, a própria curva do Mundo. De repente era noite. Era noite e eu estava no caminho. E ao longe as luzes cada vez mais intensas. Como saber se estavam fora ou se estavam dentro? Eram luzes. Algures, atrás ou em frente, luzes ao longe, no caminho. E eu caminhava. Que se pode fazer em tais circunstâncias senão seguir? Podia ser um sonho, embora ao certo não se saiba se a vida é sonho ou não. Ou onde acaba a vida e começa o sonho. Ou vice-versa. Tal como o caminho. E o sentido ou o sem sentido. O adiante e o detrás. E as luzes, algures, na noite. Ou só, mas era o que mais temia, dentro de mim. Pirilampos, ilusão óptica, ilusão de alma. Fosse como fosse, eu caminhava. E veio a chuva veio o vento. Então lembrei-me da quentura do fogão de sala na velha casa onde havia sempre a chama da lenha ardendo. Essa lembrança me aquecia, uma chama no coração. Que pode ser tudo o que se tem quando não se tem mais nada senão a noite num caminho, algures, com luzes que não se sabe se estão fora ou dentro, se são reais ou fogo – fátuos, ilusão de alma, não mais.
Era um caminho a direito. Pelo menos parecia. E quanto mais andava, mais as luzes brilhavam. Ao princípio pareciam perto, depois reparei que, quanto mais aparentemente me aproximava, mais as luzes se afastavam. Raio de coisa, pensei. Vou para a frente e parece que vou para trás, avanço e, se calhar, estou a recuar Mas assim mesmo eu seguia. Em frente? Como saber? Então lembrei-me: Um passo atrás, dois passos em frente. Ou seria o contrário? Um passo em frente, dois passos atrás? Tal como as coisas ultimamente estavam, todos os passos em frente tinham sido afinal para trás. Pelo menos era o que se dizia. E assim, se calhar, estava eu, sozinho no caminho, com luzes as brilhar intensamente, não sei se fora não sei se dentro, cada vez mais perto, cada vez mais longe.
Percebi então que tinha perdido o sentido. Ou talvez não fosse eu que o tivesse perdido. Era o próprio sentido que estava perdido. Naquele caminho, com luzes que pareciam perto e eram longe, na minha própria perplexidade de estar a caminhar sem saber se para a frente ou para trás. Precisava de uma companhia, disse de mim para mim. Alguém que fosse ao meu lado, alguém que viesse em sentido contrário, não sei se para trás se para a frente, alguém com quem me cruzar e a quem pudesse perguntar para onde vai afinal este caminho. Mas nada. Ninguém num sentido, ninguém no outro, se é que assim se pode falar. Ninguém. Sá caminhar de noite no caminho. E as luzes a brilhar. As luzes que, quanto mais andava, mais de mim pareciam afastar-se. As luzes que não sei sequer se eram reais ou só miragem a lucilar dentro de mim.
Toda a noite sem parar eu caminhei. Estava já muito cansado quando rompeu a madrugada. Foi então que descobri que à minha direita havia um rio e que as águas corriam na direcção do meu andar. Olhei em volta e as luzes já não brilhavam. Mas não vi cidade nem nada que explicasse o brilho das luzes à noite no caminho. Olhei o rio. Talvez fosse o reflexo das estrelas nas águas. Ou talvez ilusão. Ou talvez um sinal. Mas porquê um sinal? Todos os rios vão para o mar, respondi de mim para mim.
Todos os rios e todos os caminhos, quer se vá num sentido quer no outro, algures nas curvas do mundo, todos os caminhos vão para o mar.
Manuel Alegre, O Quadrado {e outros contos}
Já agora, fica a sugestão: na primeira quinta-feira de cada mês, no Ateneu, há uma sessão de contos. Até agora assisti a três e todas elas foram muito boas.
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