sexta-feira, dezembro 16, 2005

Timóteo

Timóteo era um gato que se divertia a passear de telhado em telhado. Dali observava o frenesim da cidade e o colorido das casas e da vida que existia dentro delas. No 2o. andar do No. 20 da Rua das Generosas vivia a Senhora Inácia. Era uma deliciosa velhota, redonda como um alguidar, que lhe oferecia espinhas tenras de peixes baratos. Senhora Inácia customava ter à janela uma gaiola com um periquito anafado que cantava o dia inteiro. O pássaro era uma insolente tentação, muito melhor do que todas as espinhas tenras. Mas, a robustez da gaiola e os olhos doces de Senhora Inácia dissuadiam Timóteo de qualquer malvadez. Senhora Inácia vivia quase sempre sózinha. De vez em quando, aparecia um padre à moda antiga, com uma longa batina preta encimada por um colar branco, muito apertado no pescoço. Diziam que era o filho. Trazia-lhe sempre santinhos de cores estridentes que se espalhavam pelas paredes e por cima dos móveis. Não ficava muito tempo porque outras almas esperavam impacientemente a sua consolação. Estranhamente, o periquito deixava de cantar quando aparecia o filho da Senhora Inácia. Mal saía o padre, o periquito desatava numa berraria infernal. Depois, cansado, retomava a lenga-lenga do costume, seguro do seu lugar na rotina do 2o. andar do No. 20 da Rua das Generosas.

No prédio em frente vivia Sandra, uma bela rapariga de 20 anos, com cabelos longos e contornos fulminantes. Trocava frequentemente o dia com a noite e não dava descanso aos vizinhos com a música que punha a girar. Vivia também ela sózinha, mas era visitada, de vez em quando, por amigos que não vestiam longas batinas pretas encimadas por colares brancos. O maior prazer de Timóteo era o de ser acariciado por Sandra. As mãos dela desapareciam no mais fundo do seu pêlo iriçado. Algumas vezes, encostava o focinho à pele alva e esférica do peito de Sandra. Timóteo passou a identificar o paraíso de uma das suas sete vidas com aquela candura. Sandra não pousava os pés nas pedras da rua. Simplesmente flutuava. Era um fantasma de tantos desejos, a prova de que a tentação pode voar para lá da imaginação. O segredo da sua graciosidade residia em comportar-se como se não soubesse que era assim, que suscitava emoções tão intensas. Disso resultava uma inocência ambígua, quase insuportável. Só Timóteo tinha o privilégio de aceder às revelações do seu íntimo. As visitas à casa de Sandra eram uma peregrinação que se tornara quase obsessiva. Timóteo tinha pesadelos nos quais assistia desgraçadamente à partida de Sandra do bairro. Acordava alagado em suor e só tinha descanso depois de confirmar – altas horas da noite – que Sandra tinha a luz do seu quarto acesa por trás das cortinas encarnadas. Os dias íam correndo como se o presente fosse um futuro sem sombras. Timóteo saltava de telhado em telhado, olhando o mundo lá do alto. Senhora Inácia envelhecia tranquilamente no meio de espinhas tenras de peixes baratos, embalada pelo canto do periquito e cada vez mais afogada nos santinhos que o filho lhe trazia. Sandra perdia-se no seu fascínio e Timóteo temia acima de tudo que partisse.

Um dia, o padre foi a casa de Sandra. Por ali ficou, por trás das cortinas encarnadas, três dias e três noites. Sabe Deus que sobressaltos redimiram. Dali saiu, sem a longa batina preta, de mãos dadas com Sandra. A felicidade pingava dos seus rostos e Timóteo ficou triste e perdido como o mais traído dos amantes. Pensou em abandonar aqueles telhados. Chegou mesmo a admitir a possibilidade de pôr termo a uma das suas sete vidas. Por fim, resignou-se. De vez em quando, punha-se a olhar para a janela de cortinas encarnadas que já lá não estavam e parecia-lhe ver o vulto sinuoso de Sandra a dançar ao som de uma daquelas músicas quentes de que tanto gostava. Mas, agora vivia lá um viúvo, reformado dos caminhos de ferro, que acabou por se juntar à Senhora Inácia para a ajudar a tratar dos móveis, dos santinhos e do periquito.

Anos depois, Sandra voltou toda vestida de negro, um fantasma da beleza de outrora, rugas cavadas numa pele de rosa murcha. Foi viver na casa de sempre, sem as cortinas encarnadas. Foi-se tornando redonda como um alguidar. Voltou a acariciar Timóteo, mas as suas mãos eram agora pesadas, tão pesadas como a melancolia dos seus olhos. O padre tinha sido pendurado a preto e branco na parede, de fronte à janela, sem as cortinas encarnadas, por onde entrava Timóteo. Vestia uma camisa às riscas com o colarinho escancarado no pescoço. Senhora Inácia e o reformado dos caminhos de ferro morreram numa certa noite, extenuados. Foram encontrados nús sobre a cama com um leve sorriso nos lábios. Timóteo e Sandra resignaram-se até ao fim.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei bastante, conseguiste transformar uma historia banal em algo que nos toca..

continua :)


Francisco