domingo, dezembro 04, 2005

4:48 Psychosis


Assisti ontem à noite a um espectáculo perturbante, inesquecível, magistral, deprimente, profundo, inquietante, corajoso, violento, louco, incompreensível, enigmático, suicidário. É tudo isso e muito mais a peça de teatro “4:48 Psychosis” escrita por Sarah Kane e interpretada por... Isabelle Huppert! Ela mesma, em carne e osso, sózinha no centro do palco, estática, durante mais de uma hora e meia, vertendo lágrimas continuamente, os olhos vidrados numa expressão impassível (de resignação? de sofrimento? de raiva?), recitando o poema de quem está à beira do suicídio. Uma interpretação extremamente intimista, certamente esgotante, quer no plano fisico, quer no plano psicológico. No fim, quando recebe, quase indiferente, os aplausos do público, parece não ter ainda saído da peça. Será que sai? Onde é que começa Sarah Kane e acaba Isabelle Huppert (e vice-versa)? A interpretação é de tal maneira genial que permanece a dúvida quanto a uma fusão actriz/autora... Aliás, Isabelle Huppert tem feito cinema e teatro que desafiam a normalidade (p.ex. “O Pianista”). Os espectadores têm dificuldade em seguir o “non-sense” da maior parte do texto, um “non-sense” típico da psicose, onde se misturam números e palavras avulsos. Talvez as únicas passagens onde existe um discurso coerente sejam aquelas em que a personagem se queixa da família, do mundo e do médico, um psiquiatra que aparece episodicamente por trás de um ecrã translúcido que, na minha opinião, representa a barreira entre a realidade e a doença, não obstante a simbiose entre ambas que conduz, precisamente, à auto-destruição. Mas, o papel do médico é o de levar a paciente a fazer a distinção. Por isso, diz que ela não tem culpa, que está (apenas) doente. Por isso, diz que ela precisa de amigos, mas que ele não pode ser seu amigo, porque é um profissional. Os psiquiatras não são amigos dos seus doentes. São apenas técnicos. Também por isso se fazem pagar. Existe uma crítica implícita na peça a este dogma da profissão. A certa altura, o médico confessa à paciente que odeia o seu trabalho, que precisa de ir para casa descansar, estar bem com a sua família e os amigos. Dizendo isto, está a criar uma cumplicidade de "amigo" com a paciente e, quando se apercebe desta transgressão, pateticamente, pede desculpa...

"4:48 Psychosis" é uma espécie de espelho onde o espectador é, ao mesmo tempo, agredido e tranquilizado, porque reflecte brutalmente a distância entre a sua normalidade (do espectador) e a loucura (representada). É claro que este é um espectáculo não aconselhável a quem esteja deprimido ou, ainda menos, a quem tenha tendências suicidas... Porque, nesse caso, o espelho devolve apenas uma violenta confirmação do próprio mal-estar... Oups!

“4:48 Psychosis” é uma experiência dura, como foi dura a vida e a obra de Sarah Kane que acabou por se suicidar pouco depois de escrever a peça, nunca chegando a ver a sua representação. Foi em 20 de Fevereiro de 1999. Tinha 28 anos. Tirou um curso de dramaturgia em Bristol com nota máxima, fez um “Master” na Universidade de Birmingham. Inspirando-se nomeadamente em Samuel Beckett, escreveu várias peças que foram inicialmente recebidas com frieza (senão com desprezo) pela crítica (“the naughtiest girl in the class”). Hoje é considerada um expoente da dramaturgia britânica e europeia. É actualmente um dos autores com maior número de peças em cena na Europa. Os cemitérios estão cheios de génios e de boas pessoas...

http://www.iainfisher.com/kane.html
http://mjf.missouristate.edu/faculty/wang/ih/index.htm

2 comentários:

Anónimo disse...

Não fico supreendido pela magnifica intepretação da Isabelle Huppert, bem como pelo texto escolhido. Esta actriz francesa nunca se deixou ofuscar pela fama e dinheiro facil, que a meca do cinema constantemente lhe acena.È um caminho mais duro, mas é certamente aquele que lhe permite maior felicidade pessoal e sem duvida uma maior dávida para os outros.

Alexandre Carvalho disse...

a arte, para não cair no marasmo em que as pessoas se viciam, tende a ser levado para níveis extremos, levando a que o criador enquanto ser humano seja levado também para esses extremos. Ou às vezes é exactamente o contrário, a pessoa vai a um extremo arrastando a sua arte consigo, tornando-a cada vez mais densa. É um ciclo vicioso onde geralmente alguém sai a perder. Arte ou Indivíduo.