quarta-feira, novembro 09, 2005

« A democracia é o menos mau de todos os sistemas de governação »

Tentando aprofundar o comentário ao post da Alice intitulado "Cada Povo tem os políticos que merece", escrevi o texto que se segue, o qual pecará (também, seguramente) pela sua exagerada extensão. Bem-aventurados os que se atreverem a chegar ao fim...

Imaginemos a democracia como uma grande mesa à volta da qual se sentam diversos comensais. No topo da mesa senta-se o governo. Em cima da mesa existe um bolo, um grande bolo. O encontro destina-se a dividir o bolo. O resultado da divisão dependerá de negociações mais ou menos reguladas pelo governo, o qual é eleito por todos. Alguns comensais têm mais força, braços mais compridos para chegar à iguaria, vozes mais sonantes, argumentos mais convincentes. Nalguns casos, também fazem alianças e compromissos entre eles. O governo pode (deve !) favorecer alguns comensais em detrimento de outros – tem legitimidade (e mandato) para o fazer de acordo com o programa na base do qual foi eleito.

A democracia é essencialmente um banquete organizado para afectar recursos escassos e dividir a riqueza. Essencialmente, a Maioria escolhe « livremente », de quatro em quatro anos, aqueles que deverão apropriar-se da maior fatia. Se esses são, à partida, os mais fracos (e se a expectativa de que sejam eles os beneficiados se confirma), o sistema revelar-se-à virtuoso e poderá conduzir a uma maior justiça social... É claro que alguns eleitores não consideram a redução das desigualdades como um objectivo prioritário, especialmente os mais ricos ou mais conservadores. Há mesmo teóricos que pensam que as desigualdades são um ingrediente de prosperidade e de progresso (Robert Barro). Não estou de acordo: acho que a redução das desigualdades deve ser, em si mesmo, um elemento de prosperidade e de progresso. Não deve ser apenas instrumento... apesar de que outros teóricos demonstram que a redução das desigualdades é também útil ao desenvolvimento (Amartya Sen).

Quando votam, os indivíduos exprimem preferências e interesses individuais ou de grupo. O resultado final de uma eleição reflecte tendências dominantes que variam consoante o contexto histórico, económico e social, naturalmente mutável. Nas democracias ocidentais em que predominam os partidos de “centro”, rendidos às virtudes do mercado e aparentemente eclécticos em termos sociais e ideológicos, a Maioria constitui, porém, um universo heterogéneo e volátil, a quadratura de muitos círculos, raramente concêntricos. Os governos transformam-se, então, em caixas de ressonância de múltiplos interesses parcelares que se movimentam no seio da Maioria que os elegeu. Os governos ficam obcecados com a procura de soluções alegadamente técnicas para a harmonização dos interesses e para a prossecução de um putativo interesse geral. Desconfio sempre de discursos que recusam ou escondem a evidência dos interesses contraditórios por trás de um interesse de todos. Normalmente, dessa maneira, pretende-se disfarçar a defesa de interesses bem precisos.

O declínio das ideologias (explícitas) que se seguiu à queda do Muro de Berlim deu lugar ao primado de uma ideologia única (a do individualismo, da eficácia, do mercado e da globalização) a qual inspira políticas que absolutizam a economia, que tornam os ricos mais ricos e os pobres mais pobres e que conduzem à crise da coesão social, à perda de referências colectivas de integração. A sociedade não deve ser uma alcateia, mas sim um grupo de indíviduos com interesses não necessariamente coincidentes, partilhando, contudo, um núcleo duro de valores positivos. Em particular depois da revolução neo-liberal dos anos 1980, o que prevalece é o princípio da responsabilidade individual em detrimento da solidariedade e do elo social. Nos casos mais extremos de marginalização e, principalmente, quando a própria sobrevivência do poder estabelecido é posta em causa, encontram-se soluções assistenciais de recurso. Então, o poder tenta, à pressa, minimizar o mal-estar colectivo, dado que desde há muito deixou de maximizar o bem-estar.

A participação dos cidadãos não se limita ao voto. Os cidadãos organizam-se em diversos grupos (partidos, sindicatos, associações, etc.) que têm maior ou menor protagonismo consoante a quantidade dos seus membros e, sobretudo, o peso dos interesses que representam ou que podem ameaçar. Portanto, o « livre » confronto entre interesses antagónicos e a negociação permanente são intrínsecos à democracia.

É compreensível que os grupos privilegiados resistam à perda dos privilégios acumulados, designadamente, quando o governo tenta melhorar a eficácia do sistema ou redistribuir o bolo. Esses grupos constituem-se então em verdadeiras Corporações com acesso a meios poderosos de persuasão e de pressão, como os media ou a finança. [Tento não emitir juízos de valor, limitando-me a constatar.] A margem de manobra do governo é limitada porque, de algum modo, a sua eleição e a sua sobrevivência dependem dessas Corporações (ou de partes substanciais dessas Corporações).

A democracia começa a ficar excessivamente desvirtuada quando as Corporações minoritárias sistematicamente fazem vingar os seus próprios interesses à custa da grande massa de cidadãos que não são representados por Corporações vencedoras e que acabam por pagar as benesses dos outros. Quando, no jogo das Corporações da democracia, os perdedores (desfavorecidos e maioritários) e os vencedores (privilegiados e minoritários) são sempre os mesmos, cria-se uma fractura que põe em perigo o próprio sistema e que o descredibiliza. Os cidadãos à margem das Corporações acumulam frustrações e acabam por se afastar do processo político ou, pelo menos, por participar nele a contra-gosto e sem esperança de autênticas mudanças. Os eleitores deixam de ver a ligação entre o sentido do seu voto e as decisões que, no fim de contas, são tomadas e que determinam a afectação dos recursos e a partilha da riqueza. O problema é ainda agravado pelo facto de a chamada classe política se constituir, ela própria, em Corporação, em super-Corporação, defendendo os seus interesses específicos. O poder passa assim a viver em circuito fechado, numa torre de marfim distante dos eleitores e das suas preocupações, falando e vivendo para dentro, gerindo a sua continuidade e sucessão como um deus ex-machina acima da vida e dos problemas dos cidadãos. A lógica da sobrevivência ou perpetuação do poder, levando a todo o tipo de cedências às Corporações vencedoras, sobrepõe-se ao cumprimento dos programas sufragados.

É daqui que resulta o distanciamento entre as pessoas e a política. As pessoas passam a agir politicamente mais contra qualquer coisa ou alguém, resistindo (também pelo voto) a situações intoleráveis, do que a favor de programas indistintos (no centro do espectro político que tem ganho eleições) e, de resto, jamais realizados por causa das pressões das Corporações ou da adversidade de conjunturas insondáveis.

Caso o sistema não se reforme por dentro (o que implicaria a emergência de élites de superior qualidade e lucidez) ele pode degenerar a tal ponto que se gerem situações de ruptura, ou seja, de rejeição frontal da lógica acima descrita por parte de amplas camadas da população. Tal cenário de ruptura iminente do sistema está ainda longe de corresponder à realidade da maior parte das sociedades europeias, não obstante os avisos perturbantes e eloquentes provenientes de França... E a realidade Francesa não é assim tão peculiar e diferente da de outros países como se poderia pensar.

As vias de saída para uma tal situação estão bem de ver:

- permanecendo na legalidade democrática, as pessoas tenderão a votar nos extremos que anunciam, frequentemente com verborreia populista, um Novo Mundo alternativo aos partidos “mainstream”;
- reacções violentas mais ou menos em cadeia o que é facilitado pelos dispositivos bem conhecidos da “aldeia global” e da sociedade da informação.

A reacção à fragmentação social, à paz podre, à "tranquilidade" e ao "bom-senso" do individualismo hedonista pode ser uma recriação dos elos sociais... através da violência organizada com conotações políticas, racistas ou religiosas.

A democracia e os seus mentores que se cuidem...

1 comentário:

Joanissima disse...

Ou, como diz o Sérgio Godinho, a democarcia é o pior de todosos sistemas com excepção de todos os outros...