Vivemos numa época de “ego a mais” e de "outro a menos”. As pessoas consideram-se mais do que nunca o umbigo do universo. Dir-se-à que essa hegemonia do individualismo é uma conquista da Humanidade contra o obscurantismo e as ditaduras de todo o tipo (religioso, político, moral) que aniquilavam as pessoas. Na Idade Média, a religião, as crenças, os preconceitos, a ignorância deixavam pouco espaço ao indivíduo. Dominava a comunidade, comandada por autocráticos chefes do corpo e da alma, padres ou senhores feudais. Um deus tutelar guiava as vontades e a leitura canónica do mundo. O Homem libertou-se de deus mas tornou-se prisioneiro de si mesmo, obcecado pelo poder da propriedade, da razão e do conhecimento, orgulhoso da sua liberdade. O problema é que homens e mulheres atomizados, auto-suficientes, enfartados de tecnologia e meios de comunicação que tornam dispensável o contacto físico, homens e mulheres assim, não formam uma sociedade, ou seja, um grupo com valores e missão comuns, com um sentido de pertença e de solidariedade. De facto, a solidariedade torna-se um empecilho à expressão mais "eficiente" do individualismo. O individualismo triunfante conduz à solidão (iludida por coisas como a hiper-comunicação das redes sociais) e à falta de empatia que provoca ou tolera a violência e o crime. Assim, ridicularizando a caridade e a compaixão, rejeitando o temor a deus, as pessoas formam grupos sem escrúpulos, hiper-competitivos, impiedosos em nome da supremacia da liberdade individual.
Vivemos num mundo perigoso, cheio de cinismo e insensibilidade relativamente ao que não contribui para o bem-estar individual, medido por padrões homologados, um mundo parado num presente hiperbólico, receoso do futuro e desdenhoso do passado. A banalização do sofrimento dos outros a par da dramatização patética do próprio sofrimento, a incapacidade de lidar com a dor e com a morte, a obsessão pela juventude e pela beleza, a sub-contratação a instituições públicas ou privadas dos cuidados aos mais frágeis, a consideração dos outros como utensílios da realização dos próprios fins e desejos, tudo isso são sintomas de disfunção das sociedades ocidentais contemporâneas.
Um destes dias, um amigo dizia-me que tudo isto prefigura a guerra. E acrescentou que a situação a que chegámos talvez seja a consequência de falta de guerra durante tantos anos. As grandes guerras (porque pequenas temos todos os dias, cada vez mais dolorosas) destapam as panelas de pressão em que se cozinham as contradições e os conflitos que, atingindo certas proporções, tornam as grandes guerras inevitáveis... e úteis. Pena que os indivíduos se apercebam finalmente da sua fraqueza, que deixem de se considerar deuses só quando o mundo começar a cair literalmente à sua volta, quando a destruição, a morte e o sofrimento lhes bater à porta.
Como dizia também uma “melga escritora” há alguns dias, talvez seja necessário reinventar a Fé, porque a Fé liberta enquanto a religião oprime e as pessoas devem recuperar a humildade da sua natureza humana em vez de se colocarem numa falsa e arrogante posição divina, sem renunciar por completo à sua individualidade porque a verdadeira Fé só pode ser individual.
1 comentário:
foi por "posts" como este que ganhaste mais uma leitora fiel. WOW!
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