quarta-feira, fevereiro 23, 2011

A rapariga dos dois cães

A rapariga dos dois cães é alta, magra, loura, bonita, elegante. Tem classe, um bom gosto perturbante de salões de veludo e cristais. Caminha como um desenho animado, muito certa, decidida, hirta. Caminha como a sua solidão orgulhosa, como uma estátua perfeita do seu desprezo pelas pessoas insignificantes que a rodeiam (essencialmente todas...) que lhe podem tirar poder e visibilidade. Porque, para ela, só ela é visível. Tudo o resto é obviamente irrisório, redundante, incomodativo. A rapariga dos dois cães é ao mesmo tempo simpática (horrivelmente e eficazmente simpática) e glacial, tão cortante como a sua solidão que nunca chora, que nunca se rende. A sua simpatia soa apenas a falso, uma falsidade geometricamente elegante como ela. A sua solidão é fria como o mármore do chão da sua casa e do brilho dos seus olhos. Contudo, a rapariga dos dois cães ainda é humana. Por isso, tem dois cães enormes que trata melhor do que todos os humanos que disputam o que lhe resta de humanidade, de cedência às emoções que a poderiam empurrar para territórios perigosamente desconhecidos. Os dois cães são imponentes, de raça. Não podia ser de outra maneira na família de uma rapariga bonita e dois cães que talvez sejam mais do que cães sem, no entanto, serem humanos. Porque de humano basta o que resta de humano da rapariga dos dois cães cuja vida parece uma engrenagem meticulosa e intocável. Talvez um dia a rapariga desmorone e os cães fiquem vadios. Ou talvez não... e morram todos como viveram: pontualmente, com rigor e elegância, sem amigos nem história, esquecidos como brinquedos velhos, em sepulturas irrepreensíveis, impecavelmente afastadas das demais.

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