domingo, fevereiro 20, 2011

Anomalia italiana

O que é mais dramático no folhetim berlusconiano não é o facto de conseguir escapar à Justiça (que Justiça?) desde há anos, no meio de sucessivos escândalos financeiro-sexuais que degradam a reputação do país e que o transformam numa Républica das Bananas (ou de Saló?). Obviamente, sem prejudicar a sacrossanta presunção de inocência que, no caso de Berlusconi, se traduz numa permanente e tautológica impossibilidade de crime, contra todos os testemunhos e provas. O que é mais dramático nessa lamentável opereta é que Silvio Berlusconi tem ganho eleições e, provavelmente, se se recandidatar, voltará a ganhá-las. O que significa que uma grande parte dos italianos se reconhece na personagem. Porque é rico, fanfarrão, mulherengo, chico-esperto ("furbo"), desenrascado, divertido, optimista, desbocado? Porque desdramatiza e desritualiza o poder? Porque é populista e demagogo? Também porque a oposição (oposições) é tudo menos credível, entre uma esquerda-caviar e uma míriade de capelas onde pontificam criaturas enquistadas no sistema de impasses típico de um país que se tem auto-governado, apesar dos políticos.

Pouco antes de morrer, Saramago escreveu um artigo (publicado no El Pais) no qual dizia que Berlusconi tinha dividido a Itália em dois grupos: o dos que são já como ele e o dos que gostariam de ser como ele. Acho um bocado injusto, porque ainda há os outros e são esses que representam a esperança da Itália.

2 comentários:

Unknown disse...

Caro Miguel :
Saramago talvez não tenha sido muito injusto para com os italianos. Um povo que elegeu duas vezes para governar a Itália um crápula daqueles merece ser tratado com alguma severidade. No entanto a juventude fará despontar a esperança de que casos destes não se repitam.
Gosto do teu blogue. Tem classe
Um abraço do Zé Andrade

Miguel disse...

Caro José: Obrigado pelo comentário. Vivi 4 anos em Itália. O que me fascina é a vitalidade e a criatividade dos italianos para lidar com situações de claro desgoverno e de dúbia legalidade. Quase apetece dizer que a Itália não precisa de governo e menos ainda daquela classe política para progredir. Em boa verdade, não há uma Itália, mas várias Itálias, locais e regionais, com comunidades que prosperam apesar dos políticos. É preciso olhar para a história do país para compreender uma realidade tão complexa: a permanência de estruturas medievais no sul, o vigor burguês e renascentista do centro-norte, o processo de industrialização, a importância do Estado Pontíficio até recentemente, o processo de unificação que culminou com a formação do país em 1870, a tentativa de uniformização fascista, a prosperidade do pós-guerra sob a égide democrata-cristã (autêntico polvo de interesses inconfessáveis), o modernismo e o pós-modernismo (subversivo) dos anos 70-90. Um Estado de direito e centralizado é coisa recente que estrebucha contra as cidades e as regiões. No meio de tudo isto aparece uma personagem grotesca como Berlusconi que ridiculariza, sem escrúpulos nem vergonha, o próprio poder que exerce e que se governa a si mesmo com grande sucesso, nas bordas da lei e fora da lei, suscitando paixões e adesão de uma certa classe média farta dos ritos e das contradições de um centro-esquerda rico, cínico e campeão do nepotismo. Além disso, Bossi da Lega Nord não se cansa de fazer compromissos com Berlusconi para conquistar sempre mais autonomia para a sua Padania reaccionária e trabalhadora, contra uma "Roma ladrona".