sábado, agosto 06, 2011

Ventos de séria mudança

Isto está mesmo muito estranho, cada vez mais estranho e perigoso. A agência de rating Standard & Poor’s reduziu durante o fim de semana (para evitar ainda mais sangue imediato nos mercados que terão de esperar até Segunda-feira para reagir) a nota dos EUA em um nível para AA+, o que quer dizer que admite a possibilidade de o país putativamente mais poderoso do mundo não pagar as suas dívidas, pese embora o facto de se considerar (ainda) muito baixa a probabilidade de tal acontecer. A agência baseia essa decisão em considerações de natureza macro-económica e política, dizendo, por exemplo, que o aumento do tecto da dívida necessário para que o país continue a pagar as suas contas a tempo e horas passou a ser objecto de negociação (chantagem), de resultados imprevisíveis, entre Republicanos e Democratas. As agências de rating mais uma vez mostram a ousadia e plenitude do seu poder privado, julgando Estados supostamente soberanos e provocando um impacto enorme sobre o modo como se financiam ou não se financiam. A China imediatamente reagiu, enquanto maior credor, dizendo que os EUA deveriam mudar as suas políticas para reduzir o risco e melhorar o valor da dívida. É provável que se sigam mais reduções de rating de entidades directa ou indirectamente relacionadas com a solvência dos EUA, incluindo outros Estados soberanos e empresas estrangeiras com exposição significativa ao risco americano. Daí resultarão taxas de juro mais altas e desvio de investimentos para outras aplicações (ditas) mais seguras. Neste ponto pergunta-se: quais? Passamos a falar de risco sistémico à escala global num momento em que a crise da dívida soberana também atinge (e como!) a Europa. A chamada “Tempestade Perfeita” agiganta-se, levando ao paroxismo as fraquezas de um modelo económico e de sociedade que tem funcionado praticamente em todo o mundo, desde o colapso do bloco soviético e a emergência de novas potências, de bolha em bolha, de remendo em remendo. É preciso não esquecer que a engorda dos Estados e o seu endividamento exponencial serviram de paliativo para enfrentar os enormes problemas criados pelas sucessivas especulações da chamada “new economy”, das matérias primas, do imobiliário e dos produtos bancários tóxicos. Os grupos privados que beneficiaram dessas ajudas (na prática, nacionalizações de prejuizos) não se queixaram... Essas bolhas sucedem-se cada vez mais frequentemente e com maior amplitude e não há poderes públicos que cheguem para remediar tantos buracos gerados por uma liberalização e desregulação desenfreadas. A isso acrescenta-se o surto de crescimento de economias periféricas ou semi-periféricas que despejam grandes volumes de mercadorias, serviços e capitais nos países do centro tradicional, entrando em concorrência directa com amplos sectores dessas economias que têm de se ajustar/reestruturar rapidamente para alcançar novos factores de competitividade. É neste contexto que se situam as crises da União Europeia, metida numa camisa de forças chamada Euro. Paradoxalmente, no curto prazo, os problemas dos EUA podem, de alguma maneira, aliviar os da Europa, pelo menos, retirar-lhes uma centralidade ou gravidade exclusiva. Nem me admira que o Euro se valorize nos próximos dias, servindo de (precário) refúgio em relação ao dólar. Seja como for, os próximos dias, semanas, meses serão cheios de sobressaltos. Instala-se uma sensação de fim de ciclo global de longo prazo, o que, infelizmente, muitas vezes, leva à guerra antes de se iniciar uma nova época baseada em novos paradigmas e hegemonias.

6 comentários:

Anónimo disse...

Miguel,
A solucao de Rick Perry, actual governador do Texas e possivel candidato a Presidente pelo partido Republicano (e nao penses que este homem e excepcao, porque nao e):

Gov. Perry Tries To Keep Focus On God, Not Politics
by JOHN BURNETT

http://www.npr.org/2011/08/07/139056354/gov-perry-tries-to-keep-focus-on-god-not-politics

Talvez a explicacao esteja aqui (1 D em Principles of Economics era, no nosso tempo, equivalente a um "suficiente menos"):

Rick Perry's College Transcript: A Lot Of Cs And Ds

http://www.huffingtonpost.com/2011/08/05/rick-perry-college-transcript_n_919357.html#comments

Miguel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Miguel disse...

Ontem assisti a uma entrevista de Eduardo Lourenço em que ele dizia que a mãe de todas as crises é a "crise de falta de sentido" (que desemboca no nihilismo). A evocação de Deus (mesmo dessa maneira lamentável e patética) pode ser uma forma desesperada de encontrar "sentido" onde ele deixou de existir.

Anónimo disse...

Miguel – Concordo contigo…ate um certo ponto. Eu propria, quando vejo (ouco ou leio) certas coisas dou comigo a abanar a cabeca e a pensar, “may God help us all”; porem, garanto-te que este tipo de “coisa” vai muito alem de uma simples “(…)forma desesperada de encontrar "sentido" onde ele deixou de existir.”
Como sabes, ja la vao 35 anos a viver, exclusivamente, entre americanos. Sou a 1a a reconhecer que este pais tem coisas optimas e pessoas super interessantes, inteligentes e com elevados niveis de educacao e cultura; infelizmente, este grupo de pessoas nao representa as “massas” mas sim o que Rick Perry, Sarah Palin, GWB, Rush Limbaugh, Rubert Murdoch “and his minions “ e quejandos (ja vi que gostas muito desta palavra) chamam, com um certo desprezo, “elites”. Ora estas “elites” nao fazem parte da “real America”, i.e., ao que Sarah Palin chama “simple folks like you and me” (vivem em zonas rurais, tem a bandeira hasteada a porta de casa, trabalham muito e acreditam no direito de andar armado, em Deus/Jesus Cristo e vao a igreja todos os domingos – de preferencia protestante). De acordo com “iluminados” como Palin, Limbaugh, Sean Hannity, Newt Gingrich e Bill O’Reilly (entre outros) as “elites” estao “out of touch with real America.”
E triste ver “school boards” proibir certos livros nas bibliotecas de escolas publicas e o ensino da teoria de Darwin (por contradizer a ideia que foi Deus quem criou o mundo e a mulher duma costela do homem); e’ triste ver membros da “Tea Party” (ala de extrema direita do partido Republicano que tem uma influencia ENORME nos politicos, sobretudo Republicanos) a exigir que certos livros sejam queimados e a citar certas passagens da Biblia como solucao a certos problemas (Deus/Christianity/Oracao e Biblia). Sabias que Sarah Palin, quando era candidata a VP, disse que Jesus Cristo haveria de regressar enquanto fosse viva e que ainda iria presenciar a “Rapture?” E nao e a unica a pensar assim e envolvida em politica e, por conseguinte, no futuro deste pais. Far from it!
E triste ver a influencia que certos politicos e comentadores politicos tem nas massas, o “americano-comum” (que trabalha que nem um desgracado – para nao dizer “escravo” – e que nao tem nem tempo nem disposicao para digerir o que ouve e le com sentido critico. “Investigative reporting” ha muito que deixou de existir , Edward R Morrow e Walter Cronkite sao hoje muito criticados e os “talking heads” da TV, radio, prayer groups (mais “pastors/priests/preachers” das respectivas igrejas) tornaram-se na fonte de informacao para muitas pessoas.
Isto e’ mais do que “(…) um episódio de obsessão religiosa (…)”: this is a way of life.
Podia dizer muito mais mas fico-me por aqui. Sobretudo por ja me custar muito exprimir-me coerentemente em portugues. Mesmo assim ja disse muito mais do que tencionava.
Esperemos para ver o que vai acontecer amanha quando os mercados abrirem e, como diz a minha mae, “seja o que Deus quiser” :-)

Miguel disse...

Obrigado pelo teu comentário super-interessante sobre uma América - para mim - poderosamente longinqua. De facto, a minha impressão é que na América há o melhor e o pior. E o pior, disfarçado de pudor e simplicidade, mas profundamente inculto, ultramontano e populista está a levar a melhor. Infelizmente! Sabes que quando os problemas são complexos a coisa mais tentadora e politicamente rentável consiste em os ultra-simplificar com explicações básicas, imediatas, unívocas que o comum dos cidadãos absorve como uma espécie de prato pré-cozinhado, sem necessidade de grande digestão. Trata-se de explicações falsas mas compreensíveis porque elementares. Para Hitler, a causa dos problemas dos alemães eram os judeus. Para Le Pen, em França, a causa do desemprego e da criminalidade são os imigrantes. E assim por diante. Reduzir a complexidade a modelos elementares, dar respostas aparentemente simples a realidades complicadas, identificar bodes expiatórios, difundir lugares comuns como se fossem sabedoria suprema, atiçar emoções e instintos contra supostos inimigos comuns, tudo isso mobiliza as massas quando elas sofrem e vivem aturdidas e incrédulas perante fenómenos que são dificilmente explicáveis e que criam insegurança e regressão social. Amartya Sen, o Prémio Nobel de Economia de há alguns anos, escreveu um livrinho fantástico chamado "Identidade e Violência", no qual explica a violência através da simplificação da diversidade inerente à identidade de cada um de nós. Um Mulçulmano é muito mais do que Muçulmano: é pai, é filho, é amante, gosta de couscous ou não, gosta de futebol ou não, é homosexual ou heterosexual, é culto ou ignorante, é burro ou inteligente, etc. Mas, basta reduzir esse indíviduo à categoria de Muçulmano e dizer que Muçulmano é coisa má, com base em sofismas e crenças mais ou menos elementares, para o tratar mal apesar de tudo o resto que ele também é e que pode ser tão positivo ou negativo sem ter nada a haver com o facto de ser Muçulmano.

A chamada América profunda do trabalho, das raízes rurais, da educação elementar que despreza os intelectuais, do self-made man, da religiosidade mais ou menos mística e difusa, feita à medida das necessidades de cada comunidade, da rigidez dos princípios morais, do materialismo básico, da liberdade individual a todo o preço contra um Estado dito usurpador... essa América também dá hipocrisia, repressão, desconfiança pelo que é diferente, fundamentalismo, falso pudor, instinto criminoso, racismo. Esse ambiente é bem retratado nos filmes e livros dos anos 50 e 60 quando o Macartismo era o desporto favorito do poder republicano. Parece estarmos a regressar a esses tempos sombrios, substituindo os comunistas sabotadores da Santa América pelos negros, por financeiros sem escrúpulos, pela praga dos chineses e outros demónios como os democratas que ousam restabelecer alguma coisa de Welfare State sem, no entanto, tocarem no gigantismo das despesas militares de que depende a manutenção do império.

Anónimo disse...

Wow, Miguel, I'm impressed!...
(but not surprised)

Nao voltes a dizer que nao conheces bem a realidade americana porque nao e' verdade. Fica sabendo que tens uma visao muito mais clara e realista deste pais do que muito boa gente que nunca daqui tirou os pes; o teu ultimo paragrafo, entao, "is right on the money."

Se usasse chapeu diria-te, "I take my hat off to you" (expressao que se usa quando se admira alguem).

Um abraco, old friend.
TN :-)