sábado, fevereiro 23, 2008

Destinos

Isabel, a mãe, nunca amou verdadeiramente Ana, a filha. Apenas a utilizou como um cavalo de corrida para redimir os seus próprios traumas, como uma arma de arremesso contra um passado de vergonha. Isabel foi vítima de pecados, segundo ela grandiosos, que fazem uma vida inteira, no sentido de que passam a motivar tudo ou quase tudo, passam a justificar tudo ou quase tudo. Pecados que nem precisam de ter a grandeza que se lhes atribui. Podem ter sido apenas faltas a uma moral obtusa, actos fora de tempo e no sítio errado. Não interessa: foram erros ou traições ou vinganças que se tornaram a moldura do resto da vida.

Há coisas más de que precisamos como se fossem energia para enfrentar outras coisas, porventura piores, que a vida nos mete no caminho. A reacção à maldade, real ou virtual, é um combustível potentíssimo. Torna-se uma missão. E sabemos quão fortes e perseverantes são os missionários. Mete-se a cabeça em baixo e continua-se a subir a estrada de uma putativa perfeição, mordendo os lábios, contra tudo e contra todos e, sobretudo, contra si próprio, o que é mais dramático e cego.

Pois bem, Ana foi um instrumento da redenção desses caríssimos pecados porque não podia ser nada menos do que perfeita, nada menos do que Isabel deveria ter sido e não foi. E não foi por uma culpa estúpida que atribui a si mesma. Isabel tratava a filha como se fosse uma gazela. As suas carícias eram as de um tratador de feras. Os seus olhares não pingavam ternura, mas exigiam devoção e esforço. Ana olhava-a com uma mistura de respeito e pavor. De vez em quando, timidamente, implorava carinho, mas o que saía era um beijo furtivo, uma cedência às “lamechices que satisfazem os fracos”. O mínimo deslize, a mais pequena leviandade de Ana eram sinais de descarrilamento, de fuga à missão que ambas tinham de cumprir: a de mostrar a todos que, apesar dos erros cometidos numa fase aziaga da vida de Isabel, eram ambas fortes e superiores e vitoriosas.

As emoções, o amor e a ternura eram compromissos inaceitáveis, insignificâncias que podiam desviar do trajecto sumptuoso da redenção.

Até que Ana decidiu viver a sua própria vida em vez de viver a vida que a mãe lhe tinha reservado. E Isabel caiu irremediavelmente na armadilha que foi urdindo para si mesma, odiando a felicidade da filha que era nada menos do que uma enormíssima, insuportável traição aos destinos de ambas.

1 comentário:

Gonçalo Rodrigues disse...

momento de inspiração..