Um certo dia, uma melga cansou-se de tanto picar, de chupar tanto sangue de vítimas indefesas, de fazer tanto zum-zum por cima da cabeça de gente a tentar dormir desesperadamente, de fazer horriveis inchaços na pele alva de criancinhas chorosas. A melga perguntou a si mesma porque tinha nascido com um tal fado, porque é que a sua natureza não era compatível com a bondade. Pôs-se a chorar dias a fio, implorando - talvez a Deus ! - que queria ser uma boa melga, que deixasse boas recordações nas pessoas que encontrasse. Começou a definhar porque não ingeria o sangue necessário. As asas ficaram quebradiças e quase já não conseguia voar. Isolou-se e ficou tão deprimida que as companheiras se preocuparam, temendo que um tal pranto as contagiasse, pondo em perigo a sobrevivência da própria espécie.
Houve uma assembleia das melgas durante a qual se defendeu a idiossincrasia da pequena besta voadora, o seu carácter intrinsecamente sanguinário e chato, a inevitável antipatia dos humanos em relação às melgas. Não se podia conceber a melga como animal doméstico... Que não havia nada a fazer. Que negar essas características significava negar a própria existência da espécie. Que o Criador tinha posto ao mundo estes animaizinhos para serem precisamente como são, sem cedências a moralismos nem remorsos. Era preciso continuar a picar, a chatear e a sugar sangue fresco, aproveitando a estação do calor, porque daí a pouco tempo chegaria o Inverno e as pobres melgas, como todos os anos, "cairiam que nem tordos" (salvo seja). Sim, porque a melga, apesar de tudo, é efémera. Deve aproveitar ao máximo a sua breve existência para realizar o destino que Deus lhe deu. Afinal de contas, chateia, mas chateia pouco tempo. Não pode consumir essa curta vitalidade com dúvidas metafísicas irresolúveis. Assim sendo, por unanimidade e para preservar os mais sagrados interesses da espécie, a assembleia das melgas condenou a melga "resistente passiva" a manter-se uma melga como todas as outras, isto é, chata, chupadora de sangue, barulhenta e inoportuna. A ré ouviu a sentença com uma melancolia mortal e virou costas.
Com o que restava das suas forças, a melga alternativa voou para um charco próximo onde passou os poucos dias que lhe restavam a escrever um testamento. Um testamento, não de jóias ou de casas ou de terrenos (porque não tinha nada disso, naturalmente...), mas sim de ideias a favor da bondade dos seres destinados à maldade. Quem tentou publicar o dito testamento foi uma lagartixa que papou a nossa pobre melga pouco antes do seu estertor. Por sua vez, a lagartixa foi papada por uma perdiz que foi morta por um caçador que foi abatido por uma bala disparada por engano por outro caçador que morreu de remorsos.
Porque a natureza dos homens, ao contrário da das melgas, é boa e má ao mesmo tempo ou nem uma coisa nem outra...
4 comentários:
5 estrelas;)
obrigado ;-)
Concordo com a Alice. :)
lol sem palavras mm!!!
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