quarta-feira, junho 14, 2006

A agulha

Era uma vez uma agulha que perfurava vezes sem conta buracos apertados, nos mais diversos tecidos, transportando linhas das mais variadas cores e espessuras. Nos tecidos mais grossos e obstinados, a dita penetração tornava-se mais difícil, mas, com perícia e algum esforço, tudo se fazia... Era uma beleza perfurar os panos de melhor qualidade, tão maleáveis e amigos da agulha, orgulhosa do seu brilho, imune à mais insignificante oxidação. Era feita de um aço de finíssima qualidade. Remendava, cozia, pespontava, caseava, cerzia... sem tréguas nem descanso. Fazia magnificas acrobacias, guiada pela mão ágil dos artistas da costura, ficando com a cabeça e, sobretudo, com o cu às avessas (o famoso e estreitíssimo “cu da agulha”...). Na realidade, o trabalho era de equipa, implicando um diálogo especial entre o instrumento e o timoneiro do instrumento. Às vezes, a agulha castigava a falta de talento ou distracção dos costureiros, entrando-lhes pelos dedos adentro, do que resultavam esguichos de sangue e impropérios indizíveis. Iradas com tal acrimónia, as vítimas atiravam a agulha para longe. Mas, a seguir, passavam longos minutos à sua procura nos sítios mais rebuscados que, porém, não chegavam ao insólito de um palheiro, pelo que, se evitava o extremo proverbial de “procurar uma agulha num palheiro”. Seria, de qualquer modo, um lugar impróprio para tão nobre agulha...

A agulha passava dias inteiros a entrar em buracos e a sair de buracos, a perder-se em labirintos de fibras naturais ou artificiais, a carregar linhas mais ou menos pesadas e caprichosas, a suportar o suor das mãos dos costureiros, a perceber, pela suavidade ou rispidez dos gestos, a sua pressa ou o estado da sua alma. A agulha continuava, incansável, a realizar a missão para a qual tinha sido criada, a fazer de ferramenta das mais diversas obras, algumas seguramente belas, outras apenas rotina. Era exactamente isso que a entristecia. Isto é: conhecia o detalhe da perfuração, a rigidez do tecido, a cor e espessura da linha, a microscópica arquitectura da obra, mas nunca tinha acesso à visão global do trabalho efectuado. Nunca ninguém a tinha elevado acima do tecido, no final da obra, para lhe mostrar o resultado para o qual tinha contribuído de forma tão decisiva. Ao fim do dia, era simplesmente atirada com displicência para a caixa de costura onde se misturava com outras agulhas, linhas, botões, tesouras e outros objectos anónimos de que também é feita a arte de costurar.

E se um dia um artífice simpático a deixasse ver, bem do alto, como eram as peças de tecido, antes e depois da sua intervenção, como tinha sido importante o seu esforço para reparar peças de roupa, para reconstruir os mais diversos tecidos, para unir retalhos díspares de modo a criar novas criaturas do fantástico mundo têxtil?

E se nos deixassem ver claramente, sem cosmética, the big picture para a qual andamos todos a contribuir, quase sempre às cegas, cada um no seu canto, convencidos de importâncias e de prioridades, no fim de contas, duvidosas? O problema é que não se vislumbra nenhum “artífice simpático”...

3 comentários:

Alice disse...

Tu tens cá uma cabecinha....

Miguel disse...

Devo confessar que a re-leitura deste texto me deixa algo perplexo, a mim próprio, o autor.

Explico-me.

Digamos que os dois primeiros parágrafos contém uma série de metáforas que nos transportam facilmente para o imaginário sexual. Porém, não tinha a mínima intenção de ir por aí. É "a posteriori" que me apercebo da possibilidade desse desvio...

Os dois últimos parágrafos permanecem absolutamente fiéis à mensagem (supostamente filosófica) que me inspirou.

Do que se pode concluir que (i) a lingua portuguesa é mesmo traiçoeira (todas as linguas o são!) e (ii) quem escreve arrisca-se a ser refém das palavras e a exprimir mais (ou menos) do que pretende.

As palavras são uma espécie de Odaliscas que seduzem e entontecem os seus artesãos.

PS: Francisco, fico contente que gostes do nosso blog. Ciao

Alexandre Carvalho disse...

já não é o primeiro destes contos que leio, mas manifesto pela primeira vez o quanto eles me agradam...