Li este fim de semana o livro representado aqui ao lado. Trata-se de uma síntese interessante da história e da sociedade alemãs, propondo uma chave de leitura (para mim) original para o pior do que se tem passado naquele país. Em resumo, o mal terá sido provocado pela pequena burguesia, criada no seio das pequenas cidades onde as pessoas se protegiam da Peste Negra no século XIV, e reforçada nessas mesmas pequenas cidades depois da Paz de Vestefália que pôs fim à Guerra dos 30 Anos em 1648.
A pequena burguesia alemã, odiada por Nietzcshe, é acusada de tacanhez, de conservadorismo, de gostar acima de tudo dos pequenos privilégios, da protecção corporativa, de desconfiar de tudo o que é moderno, exterior e diferente e de ser anti-semita, de enaltecer cegamente a autoridade, a propriedade e a família. Essa pequena burguesia ama o "pequeno" conforto, a estabilidade hipócrita, a segurança, o respeito da moral, das hierarquias e das normas. A pequena burguesia vive angustiada com medo de tantas coisas: do futuro, da mudança, da intranquilidade, do crime, da doença.
Foi essa classe que apoiou o expansionismo do Imperador que resultou na I Guerra Mundial. Foi ela que, profundamente desiludida e prejudicada durante o período que se seguiu à Guerra (nomeadamente, com a Républica de Weimar) se colocou nos braços do Nacional-socialismo constituindo, de facto, a sua base social de apoio. É essa mesma classe que, na Alemanha de Leste, aturdida pela ruptura do "equilíbrio" da RDA, onde era rainha e senhora, desconfia de tudo o que é estrangeiro e assiste impávida, para não dizer contente, aos ataques incendiários a residências de imigrantes e refugiados políticos. É essa classe, habituada a protecções de natureza profissional (uma lei que reintroduziu as velhas corporações de artesãos foi aprovada pelo Bundestag após a II Guerra Mundial, durante o governo de Adenauer), ciosa de regulamentos que salvaguardam a sua tranquilidade medíocre, é essa classe que se revolta contra as reformas necessárias ao desbloqueamento da proverbial, mas obsoleta, "economia social de mercado", uma espécie de bolsa de interesses e de tráficos, levada ao extremo da corrupção por Helmut Kohl. Já diziam Marx e Engels no Manifesto Comunista: "A classe dos pequenos-burgueses, legada pelo século XIV e que, a partir dessa altura, renasce sem cessar sob formas diversas, constitui na Alemanha a verdadeira base social da ordem estabelecida".
Mas que classe é esta? É um grupo numeroso, maioritário que se situa entre o proletariado e a grande burguesia. Esta última controla o poder económico e financeiro e, por consequência, tendencialmente, todos os outros poderes. O proletariado não é, actualmente, um conceito vazio ou uma realidade caduca. Hoje, essa classe aumenta de novo, alimentando-se de milhares de trabalhadores precários que trabalham nos serviços e na indústria, muitos deles "working poors" (sabiam que em França muitos sem-abrigo são empregados?). Seja como for, a pequena burguesia foi reforçada pelo crescimento económico do pós-guerra (na Europa) e pela expansão que se verificou após a Revolução (em Portugal).
Essa classe, cheia de tiques e manias, para caricaturar a descrição de Johannes Willms, representa um imenso centro, volátil e, por vezes, caprichoso, que ganha eleições e que, portanto, é cobiçado por todos os partidos da esquerda e da direita que, assim, caem numa não-ideologia, numa mensagem "à la carte", num discurso falacioso de interesse geral e de prosperidade para todos. A pequena burguesia odeia o conflito e os partidos que lhe cantam a canção do bandido também, ou pelo menos, disso fazem de conta. Romantizam o consenso. A pequena burguesia é o alicerce da estabilidade, mas reage muito mal quando lhe apertam os calos, fazendo valer todo o tipo de interesses imediatos e de prerrogativas.
Temo que, para o melhor e para o pior, sejamos (quase) todos pequeno-burgueses ou pretendentes a pequeno-burgueses: médicos, enfermeiros, professores, empregados de comércio, advogados e juizes, pequenos comerciantes, industriais e agricultores, empregados bancários, funcionários judiciais, etc., etc.. Cada uma destas corporações tem as suas afinidades, angústias e "legítimas" reivindicações em relação à partilha do bolo social.
Uma putativa lucidez, inspirada por um livro heterodoxo sobre a Alemanha, levou-me, por caminhos ínvios, a tirar conclusões que não são certamente politicamente correctas...
2 comentários:
Parece-me, à primeira vista, um livro muito interessante. Mas uma pergunta: enunciaste o Tratado de Vestefália e a seguir já depois da unificação da Alemanha, na I Guerra Mundial. Que considerações histórico-culturais é que o autor toma para descrever a pequena burguesia alemã? ou seja, o que é que ele diz para depois ler a tua constatação no 2º parágrafo do post?
É que uma pequena burguesia tacanha não coincide com a visão histórica que tenho de um país que se lança a um processo de industrialização monstruoso, que em poucas décadas se torna um dos principais motores da europa. É esse 'gap' histórico no 2º parágrafo que gostava de ler mais detalhadamente.
De resto, repito-me: parece-me ser um livro muito interessante.
De facto, a pequena burguesia de que se trata é a pequena burguesia do "artesanato", vivendo nas pequenas cidades, mais ou menos rurais. Essa classe olhava com desconfiança e receio para o processo de industrialização e de urbanização aceleradas protagonizado pela grande burguesia. Essa industrialização foi favorecida pelo proteccionismo teorizado, por exemplo, por Friederich List ("industrias nascentes"). Mas, a pequena burguesia temia a destruição do seu mundo bucólico e fechado. Temia os operários sem raizes nem moral, miseráveis e violentos. O enriquecimento da Alemanha porém realizou-se, não obstante as angústias dessa Alemanha profunda do "Volk" pequeno proprietário, potenciando as pretensões belicistas da grande burguesia e do exército do Imperador Guilherme.
Mas, a Alemanha ainda hoje é feita dessa coexistência entre o grande capitalismo dos campeões industriais e esse universo imenso das PMEs ("der Mittelstand") onde se continuam a cultivar os valores corporativos da pequena burguesia e da "identidade alemã".
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